O Parasita II
O parasita literário tem os mesmos traços psicológicos do
outro parasita, mas não deixa de ter uma afinidade latente com o fanqueiro
literário. A única diferença está nos fins, de que se afastam léguas; aquele é porventura
mais casto e não
tem mira no resultado pecuniário, — que, parece, inspirou o
fanqueiro. Justiça seja feita.
A imprensa é a mesa do parasita literário; senta-se a ela
com toda a sem-cerimônia; come e distribui pratos com o sangue frio
mais alemão deste mundo — diante da paciência pública — que vacila sobre
os seus eixos. Um amigo meu define perfeitamente este curioso
animal; chama-o Vieirinha da literatura. Vieirinha, lembro ao leitor, é
aquele personagem que todos têm visto em um drama nosso.
De feito, este parasita é um Vieirinha sem tirar nem pôr;
cortesão das letras, cerca-as de cuidados, sem alcançar o menor favor das musas.
Segue-as por toda a parte, mas sem poder tocá-las. Só não
sobe ao monte sagrado, porque é uma excursão difícil, e só dada a pés mais
de ferro, e a vontades mais sérias. Ali, ficam eles nas fraldas,
soltando uma orquestra de gemidos, até que o velho cavalo os vem despedir
com uma amabilidade de pata sofrivelmente acerba.
Um coice é sempre uma resposta às suas súplicas... Represália no caso.
Eterna lei das compensações!
Entre nós o parasita literário é uma individualidade que se
encontra a cada canto. É fácil verificá-lo. Pegais em um jornal; o que
vedes de mais saliente? uma fila de parasitas que deitam sobre aquela mesa
intelectual um chuveiro de prosa ou verso, sem dizer — água vai! Verificai-o!
O jornal aqui não é propriedade, nem da redação nem do
público, mas do parasita. Tem também o livro, mas o jornal é mais fácil de
contê-los.
Às vezes o parasita associa-se e cria um jornal próprio.
Aqui é que não há de escapar-lhe. Um jornal todo entregue ao parasita, isto é, um campo vasto
todo entregue ao disparate! É o rei Sancho na sua ilha!
Ele pode parodiar o dito histórico l’état c'est moi! porque
as quatro ou seis páginas, na verdade, são dele, todas dele. Ele pode
gritar ali, ninguém lho impedirá, ninguém; uma vez que não ofenda a moral pública. A
polícia pára onde começa o intelectual e o senso comum; não são crimes no
código as ofensas a esses dois elementos da sociedade constituída.
Ora, sustentado assim pelos poderes, o parasita literário invade, como o Huno moderno, a Roma da intelectualidade, com a decência moral
nos lábios, mas sema decência intelectual.
Tem pois o jornal, próprio ou não próprio, onde pode sacudir-se a gosto, garantido pelas leis. Se desdenha o jornal tem ainda o livro.
O livro!
Tem ainda o livro, sim. Meia dúzia de folhas de papel dobradas, encadernadas, e numeradas é um livro; todos têm direito a esta operação
simples, e o parasita por conseguinte.
Abrir esse livro e compulsá-lo, é que é heroico e digno de pasmo. O que há por aí, santo Deus! Se é um volume de versos, temos nada menos que
uma coleção de pensamentos e de notas arranhadas laboriosamente em harpas
selvagens como um tamoio. Se é prosa — temos um amontoado de frases
descabeladas entre si, segundo a opinião do autor. É muitas vezes um drama, um
romance misterioso, de que o leitor não entende pitada. Se eu quisesse ferir individualidades, tocar em suscetibilidades, desenrolaria aqui um sudário dessas
invasões na literatura; mas o meu fim é o individuo, e não um indivíduo.
O parasita literário vai ainda aos teatros. Esta invenção de
recitar nos teatros, tirada da antiguidade grega, que levanta um bardo em um
festim, como nos mostra a Odisseia, abriu um precedente, e deu azo ao abuso.
A autoridade, que é ainda a polícia, não indaga do mérito da obra, e quer apenas
saber se há alguma coisa que fira a moral. Se não, pode invadir a paciência
pública.
Todos os leitores estão de posse deste traço do parasita literário. As salas dos nossos teatros têm repercutido imensas vezes com esses
arranhamentos de lira. Basta bater palmas de um camarote e ter alguns exemplares
para distribuição; a platéia deve receber aquele aguaceiro intelectual.
O parasita está debaixo do código.
Ora, o que admira no meio de tudo isto, é que sendo o
parasita literário o vampiro da paciência humana, e o primeiro inimigo nacional,
acha leitores, — que digo? adeptos, simpatias, aplausos!
Há quem lhes faça crer que alguma coisa lhes rumina na cabeça como a André Chénier; eles, a quem já não faltava vontade de crer,
aceitam, como princípio evidente, essa solução do impossível, que a parvoíce lhe dá
de boa vontade.
Que gente!
Os tragos fisiológicos do parasita são especiais e característicos. Não podendo imitar os grandes homens pelo talento, copiam na postura e
nas maneiras o que acham pelas gravuras e fotografias. Assumem um certo ar
pedantesco, tomam um timbre dogmático nas palavras; e, ao contrário do
fanqueiro, que tem a espinha dorsal mole e flexível, — ele não se curva nem se
torce; a vaidade é o seu espartilho.
Mas, por compensação, há a modéstia nas palavras ou certo
abatimento, que faz lembrar esse ninguém elogiado da comedia. Mas ainda
assim vem a afetação; o parasita é o primeiro que esta cônscio de que é
alguma coisa, apesar
da sinceridade com que procura pôr-se abaixo de zero.
Pobre gente!
Podiam ser homens de bem, fazer alguma coisa para a sociedade, honrar a musa nacional, contendo-se na sua esfera própria; mas nada,
saem uma noite da sua nulidade e vão por aí matando a ferro frio...
É que têm o evangelho diante dos olhos...
Bem-aventurados os pobres de espírito.
O parasita ramifica-se e enrosca-se ainda por todas as vértebras da sociedade. Entra na Igreja, na política e na diplomacia; há laivos dele
por toda a parte.
Na Igreja, sob o pretexto do dogma, estabelece a especulação
contra a piedade dos incautos, e das turbas. Transforma o altar em balcão e a
âmbula em balança. Regala-se à custa de crenças e superstições, de
dogmas ou preconceitos, e lá vai passando uma vida de rosas.
A história é uma larga tela dessas torpezas cometidas à
sombra do culto. O parasita da Igreja, toda a Idade Média o viu, transformado
em papa vendeu as absolvições, mercadejou as concessões, lavrou as bulas.
Mediante o ouro, aplanou as dificuldades do matrimônio quando existiam; depois
levantou a abstinência alimentar, quando o crente lhe dava em troca uma bolsa.
É um desmoronamento social. O parasita teve uma famosa ideia em embrenhar-se pela Igreja. A dignidade sacerdotal é uma capa magnífica
para a estupidez, que toma o altar como um canal de absorver ouro e regalias.
Assim colocado no centro da sociedade, desmoraliza a Igreja,
polui a fé, rasga as crenças do povo. Entra, todos o consentem, no centro das
famílias, sem haver sacudido o pó das torpezas que lhe nodoa as sandálias.
Dominou imoralmente as massas, os espíritos fracos, as consciências virgens.
Esta transformação do parasita não tende por ora a
desaparecer; a fogueira de J. Huss não queimou só o grande apóstolo, devorou também o vestíbulo
desse edifício de miséria levantado por uma turba de parasitas,
parasita da fé, da moralidade e do futuro.
Em política, galga, não sei como, as escadas do poder, tomando uma opinião ao grado das circunstâncias, deixando- a ao paladar das
situações, como uma verdadeira maromba de arlequim. Entra no parlamento com a
fronte levantada,
votado pela fraude, e escolhido pelo escândalo.
Exíguo de luz intelectual, — toma lá o seu assento e trata
de palpar para apoiar as maiorias. Não pensa mal: quem a boa árvore se
encosta...
Alguns sobem assim; e todos os povos têm sentido mais ou
menos o peso do domínio desses boêmios de ontem.
Deixá-los subir às mesas supremas do festim público. Mas
tenham cuidado na solidez das cadeiras em que se sentarem.
Na diplomacia, é mais fácil o ingresso ao parasita.
Encarta-se aí em qualquer legação ou embaixada, e vai saltitar em Paris ou em Viena.
Lá representam tristemente a pátria que os viu nascer, na massa
coletiva da embaixada ou da legação. O que faz de melhor, esse parvenu
sem gosto, é brilhar na arte das roupas, como corifeu da moda que é. Já é
muito.
Podia, se não temesse fatigar, fazer uma enumeração mais longa das famílias de parasitas que irradiam destas espécies cardeais. Seria,
entretanto, uma longa história que demandaria mais largo espaço; e não caberia
nestas ligeiras
aquarelas.
O parasita é tão antigo, creio eu, como o mundo, ou pelo
menos quase.
Em economia política é um elemento para estacionar o enriquecimento
social; consumidor que não produz, e que faz exatamente a mesma
figura que um zangão na república das abelhas.
Extinguir o parasita não é uma operação de dias, mas um
trabalho de séculos.
Os meios não os darei aqui. Reproduzo, não moralizo.
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Aquarelas
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.III, 1994.
Publicado originalmente em O Espelho, Rio de Janeiro
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Machado de Assis - (Joaquim
Maria Machado de Assis), jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e
teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 21 de junho de 1839, e faleceu
também no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1908. É o fundador da cadeira
nº. 23 da Academia Brasileira de Letras.
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