Antonio Candido (1918-2017
Antonio Candido foi uma das maiores referências intelectuais
do Brasil. São de indiscutível envergadura suas contribuições para o
entendimento do País, de sua literatura e do fenômeno literário. Foi um notável
professor de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da USP. Suas aulas eram uma obra de arte. Generosa foi sua
dedicação aos seus muitos alunos, como posso dar testemunho. Transformou-se no
correr do tempo de sua vida numa grande presença na vida brasileira pela
limpidez de sua conduta ética e pelo empenho em ser justo (uma faceta do seu
ser socialista) no trato das pessoas e das situações.
Afonso Arinos, no depoimento que deu para Esboço de Figura,
livro que organizei para celebrar os 60 anos de Antonio Candido, qualificou-o
como um grande mestre que amadureceu no exercício de sua mestria por “uma
serenidade sem frieza, uma tolerância sem concessão, uma firmeza sem
rusticidade”.
O estilo da sua prosa, no seu jogo entre ordem e movimento,
é uma expressão da acuidade e qualidade de sua visão. Da mesma maneira, num
outro registro, o coloquial de sua encantadora conversa sempre bem temperada de
“estórias” e reminiscências.
Esboço de Figura abriga notável estudo de Fernando Henrique
Cardoso, A fome e a crença (sobre os parceiros do Rio Bonito), que dá a medida
da contribuição de Antonio Candido para a ciência social brasileira, a cujo
ensino se dedicou nas etapas iniciais de sua carreira na USP. Abriga um
igualmente notável estudo de José Guilherme Merquior, O texto como resultado,
altamente esclarecedor da teoria e da prática crítica de Antonio Candido.
Formação da Literatura Brasileira (1959) é, como aponta
Roberto Schwarz, um livro de sete fôlegos.
Resulta da maneira como Antonio
Candido, ao examinar a interação da obra com autor e público, explica, com o
domínio da literatura comparada e do contraponto Iluminismo/Romantismo, a
construção do sistema literário brasileiro e o seu papel na elaboração da
consciência nacional no século 19. É uma obra que reúne os três atributos de um
clássico, identificados por Norberto Bobbio: 1) é uma interpretação autêntica
das preocupações com a formação do Brasil dos anos 50, o tempo histórico de sua
redação conclusiva; 2) mantém uma atualidade que instiga sua constante
releitura; 3) contém conceitos, categorias e interpretações de que nos
continuamos a valer – decorridos quase 50 anos de sua publicação – para
apreender o Brasil e a especificidade de sua literatura, de suas obras e seus
autores nos momentos decisivos que identificou e estudou.
Iniciação à Literatura Brasileira (1997) é uma primorosa e
atualizada síntese das ideias de Formação, que alcança o decênio de 1950 com
uma análise do sistema literário consolidado.
Antonio Candido estudou com flexibilidade metodológica, em
Literatura e Sociedade (1965), como o contexto socioeconômico externo se
transforma no criativo contexto interno do texto literário.
Analisa a
multiplicidade dos estímulos à criação literária para apontar como levam à
especificidade de cada obra. É a sua “paixão pelo concreto” que dele faz um
crítico de vertentes, sempre atento à natureza de cada obra. Textos
translúcidos, que parecem reproduzir a realidade como os romances de Zola e de
Aloísio de Azevedo, exigem uma aproximação distinta da de textos opacos como os
de Kafka e de Buzzati. É o que desvenda no seu paradigmático O Discurso e a
Cidade (1993).
O discernimento de matizes de Antonio Candido é fruto do seu
senso da complexidade das coisas. Está presente, por exemplo, em Tese e
Antítese (1963), em que examina o estilhaçamento do ser e a dimensão fecunda da
relação ordem/desordem – um dos seus temas recorrentes – no plano individual do
Homo fictus através da análise das obras de Alexandre Dumas pai, Joseph Conrad,
Graciliano Ramos e Guimarães Rosa.
O Direito à Literatura, palestra dada em 1988 na Faculdade
de Direito da USP, em curso organizado pela Comissão de Justiça e Paz da
Arquidiocese de São Paulo, hoje recolhida na quarta edição, por ele revista e
reorganizada, de Vários Escritos (2004), tem como característica uma reflexão
muito própria sobre o nexo entre o Direito e a literatura. Assinala uma
confluência entre a sua obra e a sua passagem pelo Direito, como destaquei em meu
Antonio Candido e a Faculdade de Direito, inserido no volume dedicado a
celebrar os seus 90 anos.
No seu estudo, Antonio Candido, na análise do papel da
afirmação histórica dos direitos humanos, fundamenta o direito à fruição
generalizada da criação ficcional e artística como um bem incompressível por
ser uma necessidade básica. Realça que, “assim como não é possível haver
equilíbrio próprio sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio
social sem literatura”. A literatura como “o sonho acordado das civilizações” é
um fator indispensável de humanização e “confirma o homem na sua humanidade” ao
trazer, “como uma atividade sem sossego”, livremente, “o que chamamos o bem e o
que chamamos o mal”.
Relembrei algumas facetas do percurso de um grande intelectual
que foi um grande homem sem ter tido espaço para realçar a argúcia iluminadora
da sua leitura de poesia – a de quem pioneiramente, em 1943, identificou a
importância de João Cabral.
“A morte, sempre esperada, é sempre inesperada”, dizia
Octavio Paz. Os italianos têm uma aguda fórmula para expressar o luto do
falecimento: “È mancato all’affetto dei suoi cari”. É o que tantos estão
sentindo. É o que sinto, profundamente, com afeição e admiração, como seu
antigo e sempre aluno, amigo e compadre, pois Antonio Candido foi, como disse
Guimarães Rosa – na dedicatória de Primeiras Estórias, a ele enviado –, “melhor
do que as palavras possíveis da gente”.
Folha de São Paulo, 21/05/2017
-----
Celso
Lafer - Quinto ocupante da cadeira 14 da ABL, eleito em 21 de julho de
2006, na sucessão de Miguel Reale, e recebido em 1º de dezembro de 2006 pelo
acadêmico Alberto Venancio Filho.
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário