Como se não houvesse amanhã
Sem falar no prejuízo descomunal, todos querermos saber: num
país onde o Estado babá se mete em tudo e nem permite saleiro em mesa de restaurante
por alegações higiênicas, como acontece esse escândalo da carne adulterada?
Como esses fiscais são nomeados? Por concurso? Como são controlados? Como há
essa promiscuidade com a política e financiadores de campanhas?
Sensacionalismo à parte (e não há como negar que houve nesse
caso), quanto mais descobrimos sobre a corrupção, mais constatamos que não nos
roubaram só dinheiro. Estão roubando nossos valores. De forma mais evidente,
pela mentira — celebrada neste 1º de abril em seu dia internacional. Mas a toda
hora vemos que roubam também outros aspectos de nossa dignidade: o respeito
pelo próximo, a responsabilidade de cada um se recusar a fazer o mal. O
desgaste moral acarreta o menosprezo do outro como indivíduo, por mais que se
adote um falso discurso de idealização dos outros como coletivo. Lorota,
balela.
Como se chega a esse ponto? Como tanta gente sem caráter tem
poder? Como é que alguém adultera alimentos e corrompe fiscais? Como falsificam
remédios e enganam doentes? Como entregam obras de engenharia sem segurança (de
ciclovias a barragens)? Como prefeituras fazem vista grossa e permitem que
lugares públicos recebam centenas de jovens para se divertir sem lhes dar
garantias de poder sair rápido em caso de emergência? Como qualquer um constrói
nas encostas com risco de ser levado por enxurradas e deslizamentos? Como não
há controle de quem derruba parede ao reformar imóvel, mesmo ao risco de que o
prédio desabe ? Como perseguem quem se recusa a entrar no esquema? Como fiscal
se vende dessa maneira? Como ninguém dá incertas para fiscalizar fiscais?
Há países em que a fiscalização dos fiscais fica a cargo das
seguradoras — as mais interessadas em não ter de pagar indenizações milionárias
se houver um desastre. Em outros, contratam-se universidades que recebem e são
responsáveis pelo serviço. Mas quando não há risco de punições efetivas,
ninguém se preocupa com isso. Sobretudo, em meio a tanta promiscuidade com
políticos e seus apoiadores.
Não pode dar certo um país com essa rejeição dos valores
morais, esse desprezo pelas consequências da ganância, esse imediatismo egoísta
que trata os semelhantes como descartáveis.
Já há uns 13 anos o psicanalista Jurandir Freire Costa
detectava os sinais desse processo. Alertou em livros e palestras sobre a
corrosão dos valores éticos e da autoridade, definida como um poder que emana
do respeito e da reverência, reconhecidos como fonte legítima pelo grupo
social. Sem que em momento algum isso se confunda com autoritarismo. Seria
encarnada em três instâncias: a justiça, a tradição, as figuras tutelares —
como os anciãos de sociedades tribais, em condições de dar orientação ao grupo
e servir de exemplo. Comentando quanto a crise moral estava ficando séria,
Freire Costa a situou na raiz de nossa desordem e caos, pela falência de
valores humanísticos que nos norteassem. De lá para cá, não melhorou.
Há uma percepção de que a Justiça é lenta, burocrática,
ausente, serve aos poderosos e não funciona para punir políticos, já que o foro
privilegiado protege a corrosão moral. Mesmo assim, ainda é a instância mais
forte das esperanças éticas do país, entre o STF, a PGR, a Lava-Jato e
diferentes operações policiais.
A tradição, encarnada na educação, na família, nas
religiões, se esfacelou e deixou de dar limites e transmitir modelos. Também
deixou de oferecer segurança e proteção, de apontar caminhos e preparar para
decisões. Passou a ser vista como algo careta, a ser desrespeitado, criticado e
desconsiderado, em discurso que a associa à cultura elitista e a uma execrável
exploração econômica, como se houvesse relação direta entre uma coisa e outra.
Mas não se execra o ideal do consumismo, a compulsão pela felicidade sensorial
ou as condutas predatórias de quem quer se dar bem já, às custas dos outros.
Quanto às figuras tutelares, na sociedade midiática são
substituídas por celebridades. Tudo caminha para focar apenas o instante e o
imediato, sem medir consequências dos atos, como se não houvesse amanhã. É uma
marcha insensata para abolir o tempo e tudo o que a ele se associe: a herança
histórica, os corpos com idade, as construções lentas e progressivas, a
necessidade do coletivo e gradativo, a compreensão do esforço, a elaboração do
consenso, a renúncia tendo em vista um objetivo.
Para isso, a cegueira do imediatismo recusa faxinas e se
preocupa em salvar a própria pele com autoanistias. Refuta matemática e se
pendura em palavras de ordem e slogans. Nega a razão, combate privatizações e
reformas indispensáveis. Prefere que a conta seja paga pelas crianças sem boa escola,
ou pelos idosos de amanhã (talvez elas, de novo) ao barrar a viabilidade de sua
aposentadoria.
Está doendo na carne, é verdade. Mas se ao menos
aprendêssemos alguma coisa com este pesadelo...
O Globo, 01/04/2017
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Ana Maria Machado - Sexta ocupante da Cadeira nº 1 da ABL,
eleita em 24 de abril de 2003, na sucessão de Evandro Lins e Silva e recebida
em 29 de agosto de 2003 pelo acadêmico Tarcísio Padilha. Presidiu a Academia
Brasileira de Letras em 2012 e 2013.
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