3 de outubro de 2017
Plinio Maria Solimeo
São Francisco – Federico Barocci, séc. XVII. The
Metropolitan Museum of Art, Nova York.
São Francisco de Assis
Uma das maiores vocações religiosas da História, recebeu os
estigmas do Redentor e se tornou um sustentáculo da Igreja.
São Francisco de Assis é um dos santos mais populares da
Igreja. Marcou profundamente a vida religiosa e social de sua época, exercendo
sobre ambas uma influência determinante. Sua festa se celebra no dia 4 deste
mês.
Ele nasceu em 1182 na pequena e poética cidade de Assis,
situada nos Apeninos, filho de Pietro di Bernadone dei Moriconi — que se
tornará famoso pela usura e cegueira em relação ao filho — e de Pica
Bourlemont, uma dama de origem francesa, de nobre sangue e grande virtude.
Narra uma lenda que, sentindo sua mãe as dores do parto, não
conseguia dar à luz. Trasladaram-na então até à estrebaria da casa e ali, sobre
a palha, entre o asno e o boi, à semelhança do Salvador, nasceu Giovanni di
Pietro, que passou para a História com o nome de Francisco. A origem deste nome
não é muito segura, mas consta que, por sua grande admiração pela França, seu
pai passou a chamá-lo de “Francesco”.
Alegre, esbanjador, mas temente a Deus
Quadro do conhecido episódio em que o pai de Francisco apela
ao bispo para fazer cessar as “extravagâncias” do filho, que se apressa a
despojar-se até da própria roupa do corpo para reparar a ganância do pai.
Nada sabemos da infância do santo. Na Legenda de São
Francisco (ou Dos Três Amigos), escrita por três de seus primeiros
discípulos, lemos: “Já crescido, como era dotado de inteligência viva,
dispôs-se a continuar o ofício paterno, isto é, a mercancia, porém com outros
entendimentos, pois ele era muito mais alegre e liberal do que o pai: gostava
de andar em festiva companhia, quer durante o dia quer durante a noite, pelas
estradas de Assis, em divertimentos e cantos, e era tão grande esbanjador, que
gastava em reuniões e banquetes tudo quanto ganhava”.1 Ao que acrescenta
São Boaventura, terceiro Geral dos franciscanos, contemporâneo e póstero
do Poverello: “Mas, com o auxílio divino, jamais se deixou levar pelo
ardor das paixões que dominavam os jovens de sua companhia”.2
O próprio Francisco confessa: “Eu verdadeiramente creio
nunca ter, pela graça de Deus, cometido falta sem ter feito disso expiação,
confessando o meu pecado e me arrependendo da minha culpa”.3
Alegre, jovial, desprendido, gentil, afável, “o Senhor
incutia em seu coração um sentimento de piedade que o tornava generoso com os
pobres. Este sentimento foi crescendo em seu coração; e impregnou-o de tanta
bondade, que ele decidiu, como ouvinte atento que era do Evangelho, ser
generoso com quem lhe pedisse esmola, sobretudo a quem pedisse por amor de
Deus”,4 de modo a doar até parte de seu vestuário, se não tivesse mais
dinheiro.
A popularidade granjeada até então por Francisco entre seus
conterrâneos se devia mais às suas qualidades morais que às físicas, pois “era
pequeno e de aspecto miserável”,5 atraindo pouco a atenção daqueles que
não o conheciam.
Restaurador da Igreja
qual se vê São Francisco
sustentando a Igreja – Benozzo
Gozzoli, séc. XIV. Capela na igreja
franciscana de Montefalco, Perúgia
(Itália)
Francisco levava essa vida alegre e despreocupada quando as
primeiras revelações divinas começaram a chamá-lo para algo mais alto. Rezando
um dia na igreja de São Damião, ouviu o Crucificado pedir-lhe que restaurasse
Sua casa em ruínas. Tomando as palavras literalmente, empenhou-se na reforma
não só desse templo, mas também de dois outros. O Divino Redentor então lhe
disse que restaurasse não os edifícios das igrejas, mas a própria Igreja
enquanto instituição.
E indicou-lhe como fazê-lo: “Se queres conhecer minha
vontade, precisas desprezar todas as coisas que até aqui materialmente amaste e
desejaste. Quando tiveres feito isto, ser-te-á agradável tudo quanto te é
insuportável e se tornará insuportável tudo quanto desejas”.6
Foi então que interveio Pedro Bernardone, pois o filho dava
de esmola tudo o que possuía, passando a levar uma vida considerada insensata
pelo mundo. Ocorreu nessa época o conhecido episódio em que o pai apela ao
bispo para fazer cessar as “extravagâncias” do filho, que se apressa
a despojar-se até da própria roupa do corpo para reparar a ganância do pai.
Depois disso Francisco se entregou inteiramente ao que chamou a Dama
Pobreza, seguindo ao pé da letra os conselhos do Evangelho.
Fundação dos Frades Menores
Santa Clara e São Francisco
“Como outro Elias, começou Francisco a anunciar a verdade,
no pleno ardor do Espírito de Cristo. Convidou outros a se associarem a ele na
busca da perfeita santidade, insistindo para que levassem uma vida de
penitência. Começaram alguns a praticar a penitência, e em seguida se
associaram a ele, partilhando a mesma vida, usando vestes vis. O humilde
Francisco decidiu que eles se chamariam Frades Menores”.7
Surgiram assim os primeiros 12 discípulos que, segundo
registram os Fioretti, “foram homens de tão grande santidade que,
desde os Apóstolos até hoje, não viu o mundo homens tão maravilhosos e santos”.8 “Aqueles
que vinham abraçar esta vida distribuíam aos pobres tudo o que tinham.
Contentavam-se só com uma túnica, uma corda e um par de calções, e não queriam
mais”, dirá mais tarde Francisco em seu Testamento.9
Os novos apóstolos se reuniram em torno da pequena igreja
da Porciúncula, ou Santa Maria dos Anjos, que passou a ser o berço da
Ordem.
O santo sustenta a Igreja Católica
Para obter a aprovação de sua incipiente Ordem, Francisco se
dirigiu a Roma. E o Senhor estava com ele, pois, pouco antes de chegar, como a
preparar-lhe o terreno, “o Pontífice Romano viu em sonho a basílica de
Latrão, prestes a ruir; mas um pobrezinho, homem pequeno e de aspecto
miserável, sustentava-a com seus ombros, impedindo que ruísse”.10 Quando
o Poverello de Assis se apresentou ao Sumo Pontífice, este o
reconheceu, abraçou-o, e disse, a ele e a seus companheiros: “Irmãos, ide
com Deus e pregai a penitência, segundo vos será inspirada. Quando tiverdes
crescido em número e o Senhor aumentado suas graças a vosso favor, tornai a
nós, que vos concederemos o que desejardes e ainda mais”.11
Munidos dessa aprovação pontifícia, os novos religiosos
saíram para pregar, percorrendo em duplas as cidades da região e mostrando aos
seus habitantes, pela palavra e pelo exemplo, o caminho da salvação.
Espírito e força de Elias
Certa noite os frades viram entrar e dar três voltas em seu
aposento um carro de fogo de maravilhoso esplendor, com um globo brilhante
parecido com o sol. Eles compreenderam que por aquela figura Deus quisera lhes
mostrar “que seu pai Francisco viera ‘no espírito e na força de Elias’. Desde
então [Francisco] penetrava os segredos de seus corações, predizia o
futuro e realizava milagres. Estava patente para todos que o espírito de Elias,
duas vezes mais poderoso, viera habitar nele com tal plenitude, que o mais
seguro para todos era seguir sua vida e seus ensinamentos”.12
Francisco manifestava seu amor a Deus através de uma alegria
imensa, expressa muitas vezes em cânticos ardorosos. Aos que lhe perguntavam a
razão de tal alegria, respondia que “derivava da pureza do coração e da
constância na oração”.
Essa divina loucura da cruz que arrebatou Francisco e lhe
granjeou muitos discípulos deveria atrair também a jovem Clara, de 17
anos, filha do Conde de Sasso Rosso. Desde o momento em que o ouviu pregar,
Clara compreendeu que a vida indicada pelo Santo era a que Deus queria para
ela. Francisco se tornou guia e pai espiritual de sua alma.
Como eram outros os planos dos pais de Clara, foi preciso
que ela fugisse para a igrejinha da Porciúncula. Ali Francisco cortou seus
cabelos e fê-la vestir um simples hábito religioso. Nascia assim a Ordem
Segunda dos Franciscanos, a das Clarissas. Duas semanas depois era a vez
de sua irmã Inês unir-se a ela, e mais tarde uma terceira, Beatriz.
Não desprezar os ricos
Apesar de pregar principalmente para os pobres e de se
identificar com eles, “Francisco tinha o hábito de alertar seus
discípulos, exortando-os a não condenar e não desprezar ‘aqueles que viviam na
opulência e vestiam com luxo’. Dizia que ‘também esses têm a Deus por
senhor, e que Deus pode, quando quer, chamá-los, como aos outros, e torná-los
justos e santos’”.13 Um desses nobres deu ao Poverello o Monte
Alverne, onde ele receberia a maior graça de sua vida.
Indo em 1217 a Roma, Francisco se encontrou com outro
luminar da Igreja da época. Era Domingos de Gusmão, que também fundara uma
Ordem religiosa para combater a decadência dos costumes. Ambos se abraçaram,
estabelecendo uma amizade solidificada pelo amor de Deus.
Pouco depois recebia Francisco alguém que se tornaria a
maior glória de sua Ordem e um dos santos mais populares do mundo: Frei Antônio
de Lisboa, conhecido também, mais tarde, como “de Pádua”.
Dissabores e fundação da Ordem Terceira
Uma das maiores dores de Francisco foi ver surgir entre seus
frades, chefiada pelo superior Frei Elias, uma nova tendência que dava uma
orientação diferente à do santo, principalmente em relação aos estudos e ao
modo de observar a pobreza. Francisco chegou a amaldiçoar um dos frades dessa
nova tendência, chamado Frei Pedro de Stacia.
Era, por outro lado, consolador ver tantos leigos desejosos
de pertencer à família de almas de Francisco, mas cujos laços de matrimônio ou
outros encargos terrenos não permitiam que observassem inteiramente as regras
franciscanas. Francisco fundou então uma Ordem Terceira para abranger a todos,
e muitos grandes personagens — como São Luís, Rei de França, e Santa Isabel,
Duquesa da Turíngia — a ela pertenceram.
Recepção dos estigmas
São Francisco recebe os estigmas – Benozzo Gozzoli,
séc.
XIV. Capela na igreja franciscana de Montefalco,
Perúgia (Itália)
Dois anos antes de sua morte, estando no Monte Alverne com
alguns de seus frades mais íntimos, Francisco se pôs em oração fervorosa e foi
objeto de uma graça insigne. Na figura de um serafim de seis asas apareceu-lhe
Nosso Senhor crucificado, e após entreter-se com ele em doce colóquio, partiu
deixando-lhe impressos no corpo os sagrados estigmas da Paixão. Assim, esse
discípulo de Cristo, que tanto desejara assemelhar-se a Ele, obteve mais este
traço de similitude com o Divino Salvador.
Em sua última doença, já próximo à morte, Francisco queria
que Frei Ângelo e Frei Leão permanecessem junto ao seu leito para cantar os
louvores da “Irmã Morte”. Àqueles que se escandalizavam com essa atitude,
respondia: “Por graça do Espírito Santo, sinto-me tão profundamente unido
ao meu Senhor Deus, que não posso deixar de me alegrar n’Ele”.14
“Por fim, tendo-se realizado nele todos os planos de
Deus, o bem-aventurado adormeceu no Senhor, rezando e cantando um Salmo”.15 Era
o dia 3 de outubro de 1226. Francisco tinha 45 anos, e foi canonizado apenas
dois anos depois.
____________
Notas:
Legenda de São Francisco, escrita pelos três humildes irmãos
franciscanos Leone, Rufino e Angelo, no Ano da graça de 1246”, transcrição
livre de Brasil Bandecchi, São Paulo, 1957, p. 13.
São Boaventura, Legenda Maior e Legenda Menor — Vida de São
Francisco de Assis, Vozes, 1979, p. 21.
Specumlum Perfectionis, in Johannes Joergensen, São
Francisco de Assis, Vozes, 1957, p. 316, nota 345.
São Boaventura, id, ib.
Id. ib., p. 174.
Legenda de São Francisco, p. 25.
São Boaventura, op. cit., p. 173.
Las Florecillas, Zeus, Madrid, 1963, p. 22.
Joergensen, op. cit., p. 137.
São Boaventura, op. cit., p. 174.
Legenda de São Francisco, pp. 66,67.
São Boaventura, id., p. 175.
Joergensen, op. cit., p. 216.
Id. ib., p. 393.
São Boaventura, op. cit., p. 200.
Nenhum comentário:
Postar um comentário