O bem supremo
Não será a primeira vez que uma decisão do STF influenciará
o curso da história no Brasil. As decisões sobre o mensalão, a prisão de
Eduardo Cunha, o apoio às ações do juiz Moro foram essenciais ao processo em
curso, de redenção do país. Entra agora em pauta o caso Aécio Neves, questão
que, pelos efeitos em cascata que pode provocar, ganha uma dimensão de alto
risco.
O julgamento transcende de muito a figura mais patética do
que relevante do ex-candidato à Presidência, pilhado pedindo propina a um
empresário em um telefonema obsceno. O PSDB não teve a decência de expulsá-lo.
O próprio partido expôs-se, assim, a ser expulso da confiança de seus
eleitores. Ignorar que seu presidente se corrompera, o que toda a nação
assistira, não ajuda a absolvê-lo e faz cúmplice o partido. Melhor faria
admitindo e corrigindo seus erros.
O retorno de Aécio Neves a sua cadeira no Senado seria uma
afronta a uma população já exasperada com a corrupção e a impunidade. Essa
exasperação é a única explicação para o apoio suicida que ela vem exprimindo a
uma possível intervenção militar.
A todos os problemas que nos afligem — e são tantos — veio
agora somar-se esse velho demônio que acreditávamos exorcizado para sempre. Um
general falou, outro o apoiou, o comandante do Exército deu garantias de
respeito à legalidade. Apesar disso, desde então, formou-se no horizonte um
ponto de interrogação que assombra o Brasil.
O recurso à ditadura não é só a pior das soluções. É uma não
solução, é um gigantesco problema. Inimaginável, na contramão da história
recente do país e da América Latina, do bem supremo na vida de cada um que é a
liberdade. Quem, a qualquer pretexto, admite essa hipótese tem memória curta ou
ignora o pesadelo que a quebra da democracia implicaria para o cotidiano de
todos nós, lá onde ela se encarna em direitos e liberdades. Sem falar no
opróbrio internacional que cobriria o Brasil, devolvido ao status de república
de bananas.
Não há meia democracia. Ou a liberdade e as instituições
estão garantidas ou, suspensas a liberdade e as instituições, viveríamos em uma
ditadura.
Que esta possibilidade tenha sido aventada só se explica
pelo estado de indignação, revolta e frustração vividas pela imensa maioria dos
brasileiros diante do espetáculo degradante de políticos, acusados aos magotes,
que não se arrependem de nada e continuam a delinquir, em flagrante deboche dos
sentimentos da população.
A crise de legitimidade do governo Temer e do sistema
partidário é uma evidência. Assim como é evidente que a solução da crise não
virá de um sistema político apodrecido. Esses homens não se regeneram.
Escondem-se atrás de imunidades, manipulando as garantias democráticas para
protelar inapeláveis condenações. Usam a Justiça, seus ritmos e processos para
impedir, com chicanas, que justiça seja feita.
É a incapacidade do sistema político de desatar o nó de um
governo sem legitimidade e de um Congresso conivente com a corrupção que nos
expõe seja ao fantasma da intervenção militar, seja ao risco do retorno de um
populismo carcomido, cuja mentira e demagogia são reveladas a cada volta de
parafuso das investigações da Lava-Jato. Em ambos os casos, um trágico
retrocesso, que deixa ao relento quem busca refundar a democracia.
Políticos que tanto mal fizeram ao país, pilhando os cofres
públicos, não contentes de desmoralizar a política e o Poder Legislativo querem
agora desmoralizar o Judiciário. O Senado que já desafiou o Supremo Tribunal
Federal uma vez, mantendo — logo quem — Renan Calheiros na sua presidência,
desafia mais uma vez a autoridade da Suprema Corte, chamando a si o destino de
Aécio Neves. Ora, não é o destino de um homem que está em jogo, é o de um país.
A ação do Supremo Tribunal Federal é determinante para
assegurar que as instituições democráticas sejam capazes, por si só, de
desfazer a teia de criminalidade que enredou a população brasileira. A
confirmação pelo plenário do Supremo da decisão tomada pela Primeira Turma de
suspender o mandato de Aécio Neves reafirmaria o princípio de que ninguém está
acima da lei e seria exemplar da capacidade da Justiça de fazer justiça.
Maior significado ainda teria a recusa do STF de rever sua
histórica decisão sobre a prisão de réus condenados em segunda instância, marco
do fim da impunidade.
Se o Legislativo perdeu, neste momento, a confiança da
população, mais que nunca é preciso que ela possa confiar em seus tribunais.
A resposta aos desmandos dos políticos não é a quebra da
democracia. É o seu aprofundamento.
O Globo, 07/10/2017
Rosiska Darcy de Oliveira - Sexta ocupante da cadeira 10 da
ABL, eleita em 11 de abril de 2013. É
escritora e ensaísta. Sua obra literária exprime uma trajetória de vida. Foi
recebida em 14 de junho de 2013 pelo Acadêmico Eduardo Portella, na sucessão do
Acadêmico Lêdo Ivo, falecido em 23 de dezembro de 2012.
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