‘Não me esqueci de você’
Meu amigo João Ubaldo Ribeiro era das pessoas mais generosas
do mundo — ou pelo menos do balneário do Rio de Janeiro.
Meu escritório é cheio de lembranças dele. Não me refiro só
a livros, que estão em toda a parte, mas a presentes que ele comprava na
esquina ou trazia de viagens, entre os quais uma lamparina made in Bahia, um
canivete suíço, comprado na livraria Letras & Expressões, e uma caneta
Lamy, modelo standard, que veio da Alemanha e se tornou meu talismã.
O problema é que Ubaldo cobrava sempre o uso do presente.
Certa vez me deu um par de binóculos. No dia seguinte, telefonou: “Já usou o
binóculo que eu lhe dei?” Eu, que moro na selva do Jardim Botânico, diante de
uma pedreira, não sabia onde usá-lo. Ubaldo telefonou de novo, insistindo, e me
vi obrigado a ir até a rua para acompanhar, de binóculos, um ciclista, que
ficou preocupadíssimo: desconfiou que eu era detetive particular.
Ubaldo me confessou que cultivava uma prática que aprendera
com Dorival Caymmi: o “não me esqueci de você”. Explico: sempre que voltava de
viagem, Caymmi trazia uma caixa cheia de bugigangas, caixa essa que era uma
espécie de baú da felicidade. Quando um amigo chegava de surpresa, Caymmi abria
a caixa, pescava algum objeto dentro dela — um brinquedo, um chaveirinho, a
réplica de um monumento — e dava-o ao visitante, acompanhado da frase-chave:
“Não me esqueci de você.” O visitante ficava encantado.
Um dia Ubaldo voltou da Europa. Assim que fui visitá-lo, ele
desobedeceu a receita de Caymmi e abriu diante de mim a caixa do “não me
esqueci de você”. Por preguiça de distribuir presentes, pediu que eu escolhesse
mais de uma lembrança. Hesitei. Então ele me entregou, mais ou menos ao acaso,
os que lhe pareceram mais extravagantes: uns óculos de leitura vermelhos; uma
pequena escultura que reproduzia um casal de namorados; um preservativo alemão
feito de material triplamente resistente. Por quê? Não sei.
Cheguei em casa e espalhei os mimos pelos cômodos: o
preservativo na mesa de cabeceira, o casal de namorados num armário perto da
cozinha, os óculos vermelhos na escrivaninha.
Esqueci de dizer que minha musa estava fora da cidade e,
quando chegou, ao se deparar com tais objetos, supôs que uma sirigaita — como
se dizia em séculos passados — teria se introduzido no outrora sacrossanto
recesso do lar.
Imagino que ela deve ter feito fantasias sanguinárias a meu
respeito. Mas quando se deparou com o suposto criminoso — isto é, eu —, com a
cara mais inocente do mundo, ela percebeu que não precisava levar adiante o
inquérito. Só perguntou: “De onde surgiram esses objetos?” Respondi: “Foi o
João Ubaldo que trouxe.
Já ouviu falar no ‘não me esqueci de você’?” Ela
sorriu, cúmplice, e vivemos felizes para sempre.
O Globo, 01/10/2017
Geraldo Carneiro
- Sexto ocupante da Cadeira 24 da ABL, eleito em 27 de outubro de 2016, na
sucessão de Sábato Magaldi e recebido em 31 de março de 2017 pelo Acadêmico
Antonio Carlos Secchin.
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