A farsa acabou
As máscaras caíram. La commedia è finita. A História,
irônica como sempre, escolheu a Semana da Pátria para presentear os brasileiros
com as imagens definitivas, irrefutáveis do fim de uma trama sórdida, urdida
por uma gente abominável. Malas e malas de dinheiro sujo do ex-chefe da
Secretaria de Governo de Temer, um depoimento frio e devastador contra Lula,
uma gravação obscena e machista de um bandido armado com a poderosíssima arma
que uma grande fortuna pode ser.
Que o Brasil tenha se tornado um acampamento de bandoleiros
parece evidente. O que importa agora é que os Joesleys da vida estão
encurralados, acabarão todos atrás das grades, onde já está Geddel, depois de
uma boa e profilática limpeza de lava a jato. Essa é a melhor das notícias, o
presente do Dia da Pátria.
Nos mesmos dias em que as fitas com o chorrilho de
canalhices machistas de Joesley eram ouvidas no STF, em Curitiba Palocci
contava ao juiz Sergio Moro o que muitos já sabíamos. Duzentos milhões de
brasileiros ouviram do homem forte do governo Lula que o maior líder popular do
Brasil, depositário não só das esperanças mas sobretudo do amor dos mais
pobres, eloquente no discurso contra “eles”, os ricos, vivia a soldo “deles”,
pedia milhões em propinas aos homens mais podres do Brasil. E recebia, fartamente.
Dilma sabia das regras do jogo, jogando nas laterais. Eram “eles” que
governavam o Brasil, embora os brasileiros acreditassem ter votado no Partido
dos Trabalhadores.
O depoimento de Palocci, o Italiano das planilhas da
Odebrecht, quebrou definitivamente os pés de barro do ídolo nacional que foi
Lula, posto a nu na sua verdadeira condição de cúmplice do poder econômico mais
corrupto. Sem apelação possível, ficaram demonstrados a periculosidade e o
cinismo de uma organização criminosa que, sob o seu comando, governou o país
por 16 anos.
É humilhante, sim, para o povo brasileiro, é uma traição
terrível, uma decepção imensa para os milhões que o elegeram, mas é a verdade
necessária que desconstrói os mitos e permite refundar a vida democrática.
Quando alguém é traído, no amor ou na amizade, o grande
risco é perder a capacidade de amar. Na política, os melhores sentimentos podem
deslizar para o desencanto. O risco que corre o povo brasileiro é, em um surto
de depressão nacional, desacreditar de suas esperanças e cair nos braços de
outro aventureiro ou psicopata, já que isso não falta na lista de pretendentes
à sucessão de Lula no coração do povo. Um Lula ameaçado de passar as eleições
de 2018 na cadeia.
Não me inscrevo entre os deprimidos. Indignada, sim, estou
há décadas, com a obscena desigualdade deste país injusto, com a ditadura que
ganhei de presente de 20 anos, com a progressiva usura dos sonhos de ver o
Brasil tornar-se a grande nação que acreditei que ele fosse, com a evidencia da
corrupção desvairada que, como um cupim, vai desfazendo o Estado brasileiro e
contaminando a sociedade. Por tudo isso, creio que estamos vivendo um momento
de travessia e de ruptura. Nada será como antes.
O ministro Luís Roberto Barroso, clarividente, aposta em uma
revolução silenciosa em curso. “O velho já morreu, só falta remover os corpos.
O novo vem vindo. Há uma imensa demanda por integridade, idealismo e
patriotismo. Essa é a energia para mudar o curso da História”, escreveu em
artigo recente.
Não é hora para depressão, ao contrário, é preciso celebrar
essa revolução silenciosa e usar essa energia que a raiva e a frustração
alimentam para fortalecer essas demandas que exprimem um querer coletivo.
A exigência de integridade é condição para governar, já que
é obvia a relação de causa e efeito entre a pobreza e a corrupção, a
ineficiência dos serviços e o assalto aos cofres públicos.
Idealismo, porque nunca tantos se preocuparam tão
intensamente com o destino do país, opinando nas redes e nas ruas. E se há
visões contrárias, o que é da natureza da democracia, são interpretações
diferentes de um mesmo desejo de viver em um país mais justo. A lenda da
juventude apática caiu por terra.
É preciso coragem para falar em patriotismo desde que o
perigosíssimo Jair Bolsonaro usurpou a palavra para batizar seu partido
fascistoide. No texto de Barroso essa palavra é reinvestida pelo que de fato é,
o sentimento cálido de pertencimento, real, que todos conhecemos desde a
infância e que nos leva a querer contribuir para tirar o país da tragédia em
que mergulhamos.
A Semana da Pátria foi gloriosa. A farsa acabou. Caiu o
pano.
Desmascarados, nos bastidores, o salve-se quem puder.
O Globo, 09/09/2017
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Rosiska
Darcy de Oliveira - Sexta ocupante da cadeira 10 da ABL, eleita em 11 de
abril de 2013. Escritora e ensaísta, sua obra literária exprime uma trajetória
de vida. Foi recebida em 14 de junho de 2013 pelo Acadêmico Eduardo Portella,
na sucessão do Acadêmico Lêdo Ivo.
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