A verdade das espumas
Acho que não foi há tanto tempo assim. Cheguei à praia com
minhas filhas e encontrei um aglomerado de cidadãos. Eles montavam guarda num
pequeno trecho da areia, caras alarmadas, pior: pungidas. Não fui eu quem viu o
grupo: foi o grupo que me viu e dois de seus membros vieram em minha direção,
delicadamente me afastaram das meninas e comunicaram: -Tire depressa suas
filhas daqui!. As palavras foram duras, mas o tom era ameno, cúmplice.
Quis saber por que. Em voz baixa, conspiratória, um dos
cidadãos me comunicou que ali na arrebentação, boiando como uma anêmona, alga
desprendida das profundezas oceânicas, havia uma camisinha -que na época
atendia pelo poético nome de "camisa de Vênus".
O grupo de cidadãos ali estava desde cedo, alertando pais
incautos, como se a camisinha fosse uma pastilha de material nuclear, uma
cápsula de césio com pérfidas e letais emanações.
Não me lembro da reação que tive, é possível que tenha
levado as meninas para outro canto, mas tenho certeza de que nem alarmado
fiquei. Hoje, a camisinha aparece na televisão, é banal e inocente como um par
de patins, um aparelho de barba.
Domingo último, encontrei um grupo de cidadãos em volta de
uma coisa. Não, não era aquele monstro marinho que Fellini colocou no final de
um de seus filmes. Tampouco era uma camisinha.
O motivo daquela expressão de cidadania era uma seringa que
as águas despejaram na areia. Objeto na certa infectado, trazendo na ponta de
sua agulha o vírus da Aids, que algum viciado ali deixara para contaminar
inocentes e culpados. Daqui a dois, cinco anos, espero que a Aids não mais
preocupe a humanidade. Mas os cidadãos continuarão alarmados, descobrindo novas
misérias na efêmera eternidade das espumas.
Folha de São Paulo (RJ), 27/08/2017
Carlos Heitor Cony - Quinto ocupante da Cadeira nº 3 da ABL,
eleito em 23 de março de 2000, na sucessão de Herberto Sales e recebido em 31
de maio de 2000 pelo acadêmico Arnaldo Niskier.
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