A história da mulher de seu Vieira
Aproveito
para contar a história de mulher do senhor Vieira, tal como se deu, tintim por
tintim, circulam versões desencontradas, cada qual conta o conto à sua maneira,
a maioria ouviu o galo cocoricar, mas não sabe da música a metade.
Estávamos
Calasans Neto e Auta Rosa, Zélia e eu em Casablanca, hospedados em um dos
melhores hotéis da cidade, Auta
descobriu uma barata no quarto, comunicou a Zélia, o hotel foi para a lista
negra. Como viajaríamos naquele mesmo dia para Marrakech, decidimos visitar o
outro melhor hotel, no lado oposto da praça, bisbilhotar conforto e limpeza,
nele reservar acomodações para nossa volta, uma semana após, se valesse a pena.
Na portaria buscávamos informações sobre
os quartos quando um senhor ainda jovem, bem-posto, ar esportivo, que me fitava
curioso, perguntou-me se era brasileiro, escritor e se meu nome era. Efusão
patriótica, troca de gentilezas, o compatriota ao saber ao que vínhamos elogiou
o hotel, limpíssimo, nem sombra de baratas, propôs mostrar-nos seu apartamento
para que julgássemos. Tentei recusar, quem disse, dona Rosa e dona Zélia
queriam comprovar as vantagens, aceitaram, impuseram, acompanhamos o senhor Vieira
– Vieira de Santa Catarina, se apresentara – ao oitavo andar. Tomou a frente,
bateu à porta, foi aberta por uma criança de seus cinco anos. Onde vai a corda
vai a caçamba, disse o anfitrião, não sei por que a declaração me fez
imaginá-lo viúvo a correr coxia com a filha órfã. Entramos às apalpadelas pelo
corredor ao lado da casa de banho, o apartamento mergulhado na mais negra
escuridão. Vieira adiantou-se quarto adentro direto para o janelão, eu atrás
dele, os demais atrás de mim. Num repelão Vieira abre as cortinas, a luz
matinal de Casablanca invade a habitação, ouve-se um grito de mulher: Vieira, o
que é isso? É Jorge Amado, minha filha, explica o bom leitor no auge do
contentamento, aponta-me com o dedo, em seguida me informa: essa aí é minha esposa.
Olho e vejo essa aí estendida nua em pelo na cama de casal, êxtase, visão, como
direi? Não direi nada, nada disse, apenas arregalei os olhos, essa aí ergueu o
busto, a luz banhou-lhe os seios, aleluia! Dona de casa civilizada convidou-me
a sentar na cama, convite que não estendeu aos demais, certamente por não lhe
terem sido apresentados: o marido pronunciara apenas o meu nome.
Sentei-me
por um instante fugidio, pois Zélia já dava por visto e aprovado o apartamento,
agradecia e se mandava, arrastando-nos na pressa de sair, ainda hoje não
entendo o motivo de tanto açodamento: Vieira acompanhou-nos à porta, a criança
pela mão, dissemos muito obrigado, despedimo-nos. A caminho do elevador
comentei com Calasans, as senhoras iam à frente:
- Lavaste os olhos, hein, Calá?
- Lavei os
olhos, como?
- Ora,
como! Com a nudez da mulher de seu Vieira.
- Nudez?
Que me contas, que história é essa?
Ora, pois,
após cruzar a porta, aturdido pela escuridão, Calasans Neto deixara-se ficar no
corredor do apartamento, não chegara a entrar no quarto e eu não me dera conta.
Ao saber do acontecido acometeu-lhe ataque de loucura, queria a pulso retornar
com o pretexto de ter esquecido o boné, quem sabe a esposa do Vieira continuava
nua como eu vira.
- Teu boné
está em tua cabeça, Calá. Dormiste no ponto, agora é tarde.
Partimos
para Marrakech, lá estivemos durante uma semana. Constatei quem nem as
maravilhas da cidade, nem a Medina, nem sequer o top-less das suecas à beira da
piscina no oásis, nada conseguia retirar a cabeça de Calá da mulher de seu
Vieira que ele, ai, não vira nua por preguiça.
Voltamos a
Casablanca, fomos nos hospedar no hotel sem baratas onde havíamos reservado
cômodos. Na recepção, antes mesmo de entregar o passaporte, Calá quis saber de
seu Vieira.
- Vieira?
O senhor se refere ao brasileiro da mulher bonita? – com as mãos o funcionério
traçava-lhe as formas do corpo: - Quelle femme, cher Monsieur! – estalou a
língua, som concupiscente, informou: - Viajou ontem para o Rio de Janeiro.
Aí fica a
história verdadeira. O mais que contam, o artista armado de binóculo, trepado
numa palmeira para brechar o quarto do casal Vieira, e outras estripulias, não
passam de invenções a engrossar o folclore do mestre Calá, Rei de Itapuã,
Imperador do Abaeté.
(NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM)
Jorge Amado
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JORGE AMADO - Quinto ocupante da Cadeira 23 da
ABL, eleito em 6 de abril de 1961, na sucessão de Otávio Mangabeira e recebido
pelo Acadêmico Raimundo Magalhães Júnior em 17 de julho de 1961. Recebeu os
Acadêmicos Adonias Filho e Dias Gomes.
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