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sábado, 24 de junho de 2017

DOS LARANJAIS DE SERGIPE E DAS MONTANHAS DO LÍBANO – Helena Borborema

Dos laranjais de Sergipe e das montanhas do Líbano


            O pequeno vapor apitou na entrada da barra.

            A maré alta já lhe permitia navegar até o cais depois de quase duas horas de espera fundeado ao largo.

             Do lado da cidade, muita gente apinhada ao longo da ponte de madeira: eram carregadores a espera de bagagens, comerciantes que aguardavam mercadorias encomendadas, moleques desocupados frequentadores habituais da beira do cais, meretrizes à cata de marinheiros, homens de diferentes condições sociais à espera de parentes ou amigos que chegavam, ou simplesmente de notícias.

            A pequena cidade de São Jorge dos Ilhéus movimentava-se naquele momento com o seu cais, onde desembarcava gente e de onde partiam barcaças carregadas de cacau e piaçaba, sem falar no vai-e-vem de canoas e saveiros de pesca nas imediações.

            Mas, era no vapor que apitava e, balançando, ia se aproximando do cais, que se concentravam todas as atenções e interesse. Era ele um dos que, de mês em mês, chegavam a Ilhéus vindo de Salvador. A sua chegada era sempre ansiosamente esperada por todos e pelos mais variados motivos.

            Colocada a escada, depois de atracado, a descida dos passageiros era um espetáculo especial: como sempre, mulheres amarelas de cara enjoadas e roupa amarrotada agarradas às suas crianças, homens de todas as idades, uns vestidos modestamente com seu baú sob o braço, outros endomingados. Os carregadores que logo subiam a bordo, já desciam atravancados das mais variadas bagagens: malas de couro, algumas bem apresentadas, outras amarradas de corda, baús, espreguiçadeiras, caixotes, sacos de viagem, embrulhos e mais embrulhos.

            Mas, desses vapores desciam também senhoras elegantes, de chapéu e luvas, roupa requintada, brincos e anéis de brilhantes, de braço dado com o marido, algum coronel ou doutor de Ilhéus, vindos da capital, ou moços bem vestidos da cidade, que a negócio ou estudo estavam em Salvador.

            Mas, em geral,  os passageiros eram na maioria pessoas simples, vindas de Sergipe, que se destinavam a Tabocas. O novo Eldorado era uma tentação irresistível; atraídos por ele, deixavam suas cidades e lugarejos e partiam via Salvador para a enfadonha viagem de mar, para a mata e a lama do arraial.

            Depois de desembarcarem em Ilhéus, tinham ainda pela frente o desconforto e peripécias de um percurso a ser feito de canoa e outro no lombo de burro, quando não a pé,  durante dois e até três dias. O Banco da Vitória era um pouso obrigatório antes que atingissem Tabocas. Naquele lugarejo era que se arranjava montaria ou simplesmente se descansava antes de enfrentar a segunda etapa da viagem.

            Aqueles sergipanos desembarcados traziam, além da força de seus braços para o manejo do machado, a vontade de prosperar,  sangue bom para a nova terra adotiva, tenacidade e, sobretudo, capacidade de trabalho. E aqui chegando, lutavam e iam crescendo com a Itabuna que surgia. Enfrentaram a mata, abriram picadas, expondo-se às investidas de índios e ataques das onças, correram o perigo das cobras venenosas e da febre mortal. Enfrentando a violência do meio, plantaram cacau. Outros, dedicando-se ao comércio, abriram suas vendolas ou “tabocas” como eram chamadas, suas pequenas oficinas de trabalho onde, com afinco, labutaram. Todos queriam prosperar. À nova terra iam facilmente integrando-se e compartilhando de suas alegrias e dissabores, dificuldades e vitórias e, acima de tudo, de suas elevadas aspirações.

            Implantados na boa terra Grapiúna, criaram raízes fortes e profundas que sustentaram com vigor uma grande árvore que fizeram crescer.

            Dos fortes braços sergipanos, de seu trabalho inteligente e tenaz, nasceram fazendas de cacau, empórios comerciais; foram muitos os que fizeram fortuna. Famílias pioneiras geraram filhos e demais descendentes que são, hoje, ramos vigorosos daqueles velhos troncos ancestrais.

            Daqueles tempos mais distantes, além dos Oliveira, dos Alves e Pinheiro, chegaram a essa terra Ramiro Nunes de Aquino, Paulino Vieira, Tertuliano Guedes de Pinho,  Rodolfo Cunha, José Lúcio da Silva, Nilo Santana. Com o tempo vieram ainda Francisco Fontes, José Fontes Torres, Daniel Rebouças, Francisco Benício dos Santos, Oscar Marinho Falcão, Nicodemos Barretto, Francisco Briglia e tantos e tantos outros que lutaram no incipiente comércio ou nas roças, com espírito forte, na perseverança de quem quer vencer.

            A vida dos pioneiros não foi fácil. Muitos homens dos que se embrenharam na mata, levaram vida dura, muitas vezes atolados na lama, sem meios de transporte, buscando na terra virgem a realidade com a qual sonhavam. Comiam do que plantavam ou caçavam. Alguns nem podiam dispor de mão-de-obra suficiente a ajudá-los. Por isso mesmo, muitas esposas compartilharam com o marido de todas as durezas do trabalho da mata. De manhãzinha muito cedo, sem esperar que o sol se levantasse de todo, ainda no lusco-fusco da madrugada, marido e mulher deixavam a casa ou o rancho em busca do roçado. Marchavam com os pés molhados do orvalho, quando não o corpo transido do frio da manhã úmida e chuvosa. Abnegadas mulheres, aquelas companheiras decididas e corajosas que de volta a casa, no cair da tarde, depois dia de labuta, ainda buscavam energia para ir ao ribeirão limpar a caça pegada no mundéu, preparar de noite o almoço para, no outro dia, antes de romper o sol, partir com o seu companheiro para o trabalho na mata. A caminhada que enfrentavam todo dia era grande;  por isso o almoço já ia preparado no alforje: feijão verde, carne de caça moqueada e farinha de mandioca ou aipim cozido. No vasto pedaço de terra já limpo, as sementes eram plantadas. No dia seguinte, aquele trabalho se renovaria adiante, sempre adiante em busca de uma realidade pela qual achavam válidos todos os sacrifícios – a roça de cacau. A duras penas iam eles ampliando suas plantações, amealhando o produto de seu trabalho para novos empreendimentos. Assim nasceram fortunas e se fizeram grandes patrimônios que iriam, mais tarde, enriquecer a região. Não era fácil vencer as vicissitudes do meio rude, quando o homem dispunha unicamente de sua iniciativa e inteligência. Sem estradas, sem eletricidade e meios de comunicação, sem transporte a não ser lerdas bestas de carga, só a vontade de vencer podia dar força necessária para as arrancadas a que se propuseram com destemor aqueles lutadores.


Mas, não foi só aos laranjais de Sergipe que chegou o cheiro gostoso do cacau sulbaiano. Ele se espalhou para muito, muito mais além. Atravessou oceanos e chegou a outros continentes. Subiu as montanhas do Líbano e lá encantou a muitos com a sua magia. Famílias libanesas, também atraídas, desembarcaram nas terras ricas do Sul e fizeram delas a sua terra. Rijos como os velhos cedros de seu país de origem, esses imigrantes vindos de outra parte do mundo também labutaram no comércio e na lavoura da nova terra, a amaram e aqui fizerem descendência. Entre os primeiros, chegaram os Maron, os Hagge, os Midlej, os Agle, Abdon e Habib.

            Acreditavam aqueles sírio-libaneses não só no cacau, mas no futuro de todo aquele chão que pisavam. E, nas ruas lamacentas da nascente vila de Tabocas, abriram alguns deles suas pequenas e sortidas lojas.

            Aqueles gringos de fala embolada e modos corteses despertavam atenção especial da parte de muitos velhos e rudes moradores, e traziam com seu trabalho inovador, um novo aspecto ao incipiente comércio da recém-criada vila de Itabuna. Nomes pomposos, antes nunca vistos naquelas ruas tortuosas de casinhas modestas, apareceram então pintados em tabuletas, como Parc Royal, Palácio Central, Empório Americano. Acreditavam eles que nas terras enlameadas da turbulenta vila, estava a riqueza. A prova era o ativo movimento de tropas carregadas de sacos de cacau na época da safra a despejar fortunas nos grandes depósitos dos armazéns, nas boiadas cada vez maiores que passavam beirando o rio para abastecer a população crescente.

            Disposição para o trabalho não faltava àqueles imigrantes libaneses que trocaram a sombra dos vetustos cedros e oliveiras da terra natal pelas promessas dos jovens cacaueiros. Com otimismo aprenderam e substituir a terna carne de cabrito montanhês pelo charque bem curtido vindo do sertão de Conquista.

            As árvores de frutos dourados plantadas pelas mãos calosas de homens destemidos, foram regadas com suor e até com sangue. Mas cada pé foi plantado com o idealismo e tenacidade daqueles que querem vencer e defendido com a coragem dos fortes.

            Outros migrantes vieram do próprio estado e de outros, que não plantaram cacau, mas ideias e valores espirituais. E foi pelo trabalho, idealismo e coragem desses que aqui chegaram, que se consolidou uma comunidade consciente de sua força, herança dos bravos pioneiros.

(TERRAS DO SUL)

Helena Borborema

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