Dos laranjais de Sergipe e das montanhas do Líbano
O pequeno
vapor apitou na entrada da barra.
A maré
alta já lhe permitia navegar até o cais depois de quase duas horas de espera
fundeado ao largo.
Do lado
da cidade, muita gente apinhada ao longo da ponte de madeira: eram carregadores
a espera de bagagens, comerciantes que aguardavam mercadorias encomendadas, moleques
desocupados frequentadores habituais da beira do cais, meretrizes à cata de
marinheiros, homens de diferentes condições sociais à espera de parentes ou
amigos que chegavam, ou simplesmente de notícias.
A pequena
cidade de São Jorge dos Ilhéus movimentava-se naquele momento com o seu cais,
onde desembarcava gente e de onde partiam barcaças carregadas de cacau e piaçaba,
sem falar no vai-e-vem de canoas e saveiros de pesca nas imediações.
Mas, era
no vapor que apitava e, balançando, ia se aproximando do cais, que se
concentravam todas as atenções e interesse. Era ele um dos que, de mês em mês,
chegavam a Ilhéus vindo de Salvador. A sua chegada era sempre ansiosamente
esperada por todos e pelos mais variados motivos.
Colocada a
escada, depois de atracado, a descida dos passageiros era um espetáculo
especial: como sempre, mulheres amarelas de cara enjoadas e roupa amarrotada
agarradas às suas crianças, homens de todas as idades, uns vestidos
modestamente com seu baú sob o braço, outros endomingados. Os carregadores que
logo subiam a bordo, já desciam atravancados das mais variadas bagagens: malas
de couro, algumas bem apresentadas, outras amarradas de corda, baús,
espreguiçadeiras, caixotes, sacos de viagem, embrulhos e mais embrulhos.
Mas,
desses vapores desciam também senhoras elegantes, de chapéu e luvas, roupa
requintada, brincos e anéis de brilhantes, de braço dado com o marido, algum coronel
ou doutor de Ilhéus, vindos da capital, ou moços bem vestidos da cidade, que a
negócio ou estudo estavam em Salvador.
Mas, em geral, os passageiros eram na maioria pessoas
simples, vindas de Sergipe, que se destinavam a Tabocas. O novo Eldorado era
uma tentação irresistível; atraídos por ele, deixavam suas cidades e lugarejos
e partiam via Salvador para a enfadonha viagem de mar, para a mata e a lama do
arraial.
Depois de
desembarcarem em Ilhéus, tinham ainda pela frente o desconforto e peripécias de
um percurso a ser feito de canoa e outro no lombo de burro, quando não a pé, durante dois e até três dias. O Banco da
Vitória era um pouso obrigatório antes que atingissem Tabocas. Naquele lugarejo
era que se arranjava montaria ou simplesmente se descansava antes de enfrentar
a segunda etapa da viagem.
Aqueles sergipanos
desembarcados traziam, além da força de seus braços para o manejo do machado, a
vontade de prosperar, sangue bom para a
nova terra adotiva, tenacidade e, sobretudo, capacidade de trabalho. E aqui
chegando, lutavam e iam crescendo com a Itabuna que surgia. Enfrentaram a mata,
abriram picadas, expondo-se às investidas de índios e ataques das onças,
correram o perigo das cobras venenosas e da febre mortal. Enfrentando a
violência do meio, plantaram cacau. Outros, dedicando-se ao comércio, abriram
suas vendolas ou “tabocas” como eram chamadas, suas pequenas oficinas de
trabalho onde, com afinco, labutaram. Todos queriam prosperar. À nova terra iam
facilmente integrando-se e compartilhando de suas alegrias e dissabores,
dificuldades e vitórias e, acima de tudo, de suas elevadas aspirações.
Implantados
na boa terra Grapiúna, criaram raízes fortes e profundas que sustentaram com
vigor uma grande árvore que fizeram crescer.
Dos fortes
braços sergipanos, de seu trabalho inteligente e tenaz, nasceram fazendas de
cacau, empórios comerciais; foram muitos os que fizeram fortuna. Famílias
pioneiras geraram filhos e demais descendentes que são, hoje, ramos vigorosos
daqueles velhos troncos ancestrais.
Daqueles tempos
mais distantes, além dos Oliveira, dos Alves e Pinheiro, chegaram a essa terra
Ramiro Nunes de Aquino, Paulino Vieira, Tertuliano Guedes de Pinho, Rodolfo Cunha, José Lúcio da Silva, Nilo
Santana. Com o tempo vieram ainda Francisco Fontes, José Fontes Torres, Daniel
Rebouças, Francisco Benício dos Santos, Oscar Marinho Falcão, Nicodemos
Barretto, Francisco Briglia e tantos e tantos outros que lutaram no incipiente
comércio ou nas roças, com espírito forte, na perseverança de quem quer vencer.
A vida dos
pioneiros não foi fácil. Muitos homens dos que se embrenharam na mata, levaram
vida dura, muitas vezes atolados na lama, sem meios de transporte, buscando na
terra virgem a realidade com a qual sonhavam. Comiam do que plantavam ou caçavam.
Alguns nem podiam dispor de mão-de-obra suficiente a ajudá-los. Por isso mesmo,
muitas esposas compartilharam com o marido de todas as durezas do trabalho da
mata. De manhãzinha muito cedo, sem esperar que o sol se levantasse de todo,
ainda no lusco-fusco da madrugada, marido e mulher deixavam a casa ou o rancho
em busca do roçado. Marchavam com os pés molhados do orvalho, quando não o
corpo transido do frio da manhã úmida e chuvosa. Abnegadas mulheres, aquelas
companheiras decididas e corajosas que de volta a casa, no cair da tarde,
depois dia de labuta, ainda buscavam energia para ir ao ribeirão limpar a caça
pegada no mundéu, preparar de noite o almoço para, no outro dia, antes de
romper o sol, partir com o seu companheiro para o trabalho na mata. A caminhada
que enfrentavam todo dia era grande; por
isso o almoço já ia preparado no alforje: feijão verde, carne de caça moqueada
e farinha de mandioca ou aipim cozido. No vasto pedaço de terra já limpo, as
sementes eram plantadas. No dia seguinte, aquele trabalho se renovaria adiante,
sempre adiante em busca de uma realidade pela qual achavam válidos todos os
sacrifícios – a roça de cacau. A duras penas iam eles ampliando suas
plantações, amealhando o produto de seu trabalho para novos empreendimentos. Assim
nasceram fortunas e se fizeram grandes patrimônios que iriam, mais tarde,
enriquecer a região. Não era fácil vencer as vicissitudes do meio rude, quando
o homem dispunha unicamente de sua iniciativa e inteligência. Sem estradas, sem
eletricidade e meios de comunicação, sem transporte a não ser lerdas bestas de
carga, só a vontade de vencer podia dar força necessária para as arrancadas a
que se propuseram com destemor aqueles lutadores.
Mas, não foi só aos laranjais de Sergipe que chegou o cheiro
gostoso do cacau sulbaiano. Ele se espalhou para muito, muito mais além.
Atravessou oceanos e chegou a outros continentes. Subiu as montanhas do Líbano
e lá encantou a muitos com a sua magia. Famílias libanesas, também atraídas,
desembarcaram nas terras ricas do Sul e fizeram delas a sua terra. Rijos como
os velhos cedros de seu país de origem, esses imigrantes vindos de outra parte
do mundo também labutaram no comércio e na lavoura da nova terra, a amaram e
aqui fizerem descendência. Entre os primeiros, chegaram os Maron, os Hagge, os
Midlej, os Agle, Abdon e Habib.
Acreditavam
aqueles sírio-libaneses não só no cacau, mas no futuro de todo aquele chão que
pisavam. E, nas ruas lamacentas da nascente vila de Tabocas, abriram alguns
deles suas pequenas e sortidas lojas.
Aqueles gringos
de fala embolada e modos corteses despertavam atenção especial da parte de
muitos velhos e rudes moradores, e traziam com seu trabalho inovador, um novo
aspecto ao incipiente comércio da recém-criada vila de Itabuna. Nomes pomposos,
antes nunca vistos naquelas ruas tortuosas de casinhas modestas, apareceram
então pintados em tabuletas, como Parc Royal, Palácio Central, Empório
Americano. Acreditavam eles que nas terras enlameadas da turbulenta vila,
estava a riqueza. A prova era o ativo movimento de tropas carregadas de sacos
de cacau na época da safra a despejar fortunas nos grandes depósitos dos
armazéns, nas boiadas cada vez maiores que passavam beirando o rio para
abastecer a população crescente.
Disposição
para o trabalho não faltava àqueles imigrantes libaneses que trocaram a sombra
dos vetustos cedros e oliveiras da terra natal pelas promessas dos jovens
cacaueiros. Com otimismo aprenderam e substituir a terna carne de cabrito
montanhês pelo charque bem curtido vindo do sertão de Conquista.
As árvores
de frutos dourados plantadas pelas mãos calosas de homens destemidos, foram
regadas com suor e até com sangue. Mas cada pé foi plantado com o idealismo e
tenacidade daqueles que querem vencer e defendido com a coragem dos fortes.
Outros migrantes
vieram do próprio estado e de outros, que não plantaram cacau, mas ideias e
valores espirituais. E foi pelo trabalho, idealismo e coragem desses que aqui chegaram,
que se consolidou uma comunidade consciente de sua força, herança dos bravos
pioneiros.
(TERRAS DO SUL)
Helena Borborema
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário