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segunda-feira, 12 de junho de 2017

CERRADOS E CACAUAIS – Sonia Coutinho

Cerrados e Cacauais


            O ônibus freia bruscamente, parece que um animal atravessava a estrada, em meio à escuridão. Alguns passageiros acordam, estremunhados, mas Renato não tinha conseguido dormir um só instante, a mente girando um carrossel de recordações cada vez mais antigas.

            Os primeiros tempos na cidadezinha onde nasceu, quando a Segunda Guerra Mundial estava pela metade. Sua família tinha um rádio e, quando o conflito terminou, todos saíram correndo e gritando pelas ruas. A guerra, para eles, era uma coisa distante, quase inverossímil, mas, agora que tinha acabado, sentiam que uma nova era ia começar. Aquela noite, em comemoração, foram acesos muitos fogos de artifício.

            Talvez seja essa, pensando bem, imagina Renato, a única lembrança de alegria coletiva daquele período. O resto são visões sombrias, uma pequena cidade cercada de florestas, onde o índio continuava uma presença misteriosa e ameaçadora, coisa atemorizante se inserindo no cotidiano das pessoas, como se todos esperassem um ataque iminente, mas sempre adiado.

            Já menino de sete ou oito anos, quando sua família se mudou para a capital do Estado, reencontrou aquela região – a Região Cacaueira – na psicologia de todos os seus parentes. Aquele sentido trágico e fatalista da vida, resultante, segundo concluiu, da imprevisibilidade das safras, das possíveis pragas, o preço do cacau, decidido sempre em outra parte (fatores internacionais de mercado etc.), tudo  coisas completamente incontroláveis e remotas para os moradores da região. Que, às vezes, estavam bem de dinheiro só para, poucos meses depois, quase mendigarem alguma coisa para comer. Tinha chovido demais, dera a mela, a podridão parda, a safra estava inutilizada. O peso da Moira, como na mitologia grega.

            Fora isso, tudo que conseguia lembrar-se daqueles primeiros anos da sua vida eram cenas disparatadas e dispersas – a mulher-aranha de um espetáculo circense, a avó espírita que “dava passes” e “recebia o caboclo”. Além de recantos escuros, muitos recantos escuros,  uma escuridão vinda de sob as árvores de grande floresta que abrigava os cacaueiros.


(“O JOGO DE IFÁ”)

Sonia Coutinho
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Sônia Coutinho nasceu em Itabuna, em 1939, e era filha do poeta simbolista Nathan Coutinho (1911-1991). Teve 11 livros publicados e traduziu outros 3.

Seu primeiro livro, "O Herói Inútil", foi lançado em 1964, em Salvador, pela Editora Macunaíma. Romancista, contista e tradutora, Sonia ganhou duas vezes o Prêmio Jabuti de Literatura. Em 1979, com "Os Venenos de Lucrécia", e em 1999, com "Os Seios de Pandora".

Em 2006, a escritora recebeu o Prêmio Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional, para o melhor livro de contos com "Ovelha Negra" e "Amiga Loura". Entre outros títulos da autora, destaque para "Uma Certa Felicidade", "Mil Olhos de Uma Rosa" (2001), "O Caso Alice" (1991) e "O Jogo de Ifá" (2001).

Em 1994 ganhou o título de mestre em teoria da comunicação com a tese-ensaio "Rainha do Crime — Ótica Feminina no Romance Policial”.

Faleceu  no dia 24 de agosto de 2013.

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