Cerrados e Cacauais
O ônibus
freia bruscamente, parece que um animal atravessava a estrada, em meio à
escuridão. Alguns passageiros acordam, estremunhados, mas Renato não tinha
conseguido dormir um só instante, a mente girando um carrossel de recordações
cada vez mais antigas.
Os primeiros
tempos na cidadezinha onde nasceu, quando a Segunda Guerra Mundial estava pela
metade. Sua família tinha um rádio e, quando o conflito terminou, todos saíram
correndo e gritando pelas ruas. A guerra, para eles, era uma coisa distante,
quase inverossímil, mas, agora que tinha acabado, sentiam que uma nova era ia
começar. Aquela noite, em comemoração, foram acesos muitos fogos de artifício.
Talvez seja
essa, pensando bem, imagina Renato, a única lembrança de alegria coletiva
daquele período. O resto são visões sombrias, uma pequena cidade cercada de
florestas, onde o índio continuava uma presença misteriosa e ameaçadora, coisa
atemorizante se inserindo no cotidiano das pessoas, como se todos esperassem um
ataque iminente, mas sempre adiado.
Já menino
de sete ou oito anos, quando sua família se mudou para a capital do Estado,
reencontrou aquela região – a Região Cacaueira – na psicologia de todos os seus
parentes. Aquele sentido trágico e fatalista da vida, resultante, segundo
concluiu, da imprevisibilidade das safras, das possíveis pragas, o preço do
cacau, decidido sempre em outra parte (fatores internacionais de mercado etc.),
tudo coisas completamente incontroláveis
e remotas para os moradores da região. Que, às vezes, estavam bem de dinheiro só
para, poucos meses depois, quase mendigarem alguma coisa para comer. Tinha
chovido demais, dera a mela, a podridão parda, a safra estava inutilizada. O
peso da Moira, como na mitologia grega.
Fora isso,
tudo que conseguia lembrar-se daqueles primeiros anos da sua vida eram cenas
disparatadas e dispersas – a mulher-aranha de um espetáculo circense, a avó
espírita que “dava passes” e “recebia o caboclo”. Além de recantos escuros,
muitos recantos escuros, uma escuridão
vinda de sob as árvores de grande floresta que abrigava os cacaueiros.
(“O JOGO DE IFÁ”)
Sonia Coutinho
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Sônia Coutinho nasceu em Itabuna, em 1939, e era filha do poeta
simbolista Nathan Coutinho (1911-1991). Teve 11 livros publicados e
traduziu outros 3.
Seu primeiro livro, "O Herói Inútil", foi lançado
em 1964, em Salvador, pela Editora Macunaíma. Romancista, contista e tradutora,
Sonia ganhou duas vezes o Prêmio Jabuti de Literatura. Em 1979, com "Os
Venenos de Lucrécia", e em 1999, com "Os Seios de Pandora".
Em 2006, a escritora recebeu o Prêmio Clarice Lispector, da
Biblioteca Nacional, para o melhor livro de contos com "Ovelha
Negra" e "Amiga Loura". Entre outros títulos da
autora, destaque para "Uma Certa Felicidade", "Mil Olhos de
Uma Rosa" (2001), "O Caso Alice" (1991) e "O Jogo
de Ifá" (2001).
Em 1994 ganhou o título de mestre em teoria da comunicação
com a tese-ensaio "Rainha do Crime — Ótica Feminina no Romance
Policial”.
Faleceu no dia 24 de agosto de 2013.
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