Livro escrito no fim da vida do escritor estadunidense
retrata egoísmo da humanidade
Ele estava amargo, solitário e com pouca fé na humanidade.
Percebeu que as décadas haviam passado, mas os problemas dos homens eram os
mesmos: apego aos bens materiais, ganância, falta de empatia, individualismo e
até mesmo barbáries.
Twain decidiu que precisava escrever sobre aquilo e mostrar
qual era a sua visão de mundo ao fim da vida. Como interlocutor de todos os
problemas que gostaria de evidenciar no livro, Twain escolheu ninguém menos do
que o próprio diabo como personagem. E assim surgia o livro “O estranho
misterioso”, publicado postumamente em 1916, seis anos depois da morte do
escritor.
A história se passa numa aldeia, durante a idade média, e
narra o encontro de três crianças com um estranho, que se apresenta como um
anjo chamado Satã. Rapidamente o homem sinistro conquista a atenção do trio com
suas habilidades especiais, como leitura de mentes, a capacidade de fazer
aparecer alimentos e até de criar vida.
Ao mesmo tempo em que demonstra certo interesse pela vida
humana, Satã a despreza, dizendo que a mente dos homens é pouco desenvolvida e
que suas ações são irracionais e sem sentido. Para ilustrar o que diz, ele
chega a criar uma pequena comunidade de pessoas feitas à argila e não demora
muito para que elas comecem a brigar entre si, devido à ganância e disputa pelo
poder.
À medida que a narrativa avança, Satã acaba se envolvendo
com a aldeia de diversas formas. Suas ações acabam influenciando a vida de
várias pessoas do local, porém as três crianças permanecem como as mais
próximas dele, especialmente Theodore, o protagonista e narrador da história.
Os diálogos elaborados, repletos de metáforas e ironias,
trazem inúmeros questionamentos a respeito do senso moral e da natureza humana.
Satã evidencia que o egoísmo nos isola, enquanto criamos uma dependência quase
cega pelos bens materiais.
A falta de empatia, o pré-julgamento e o medo do
conhecimento também são brilhantemente abordados na obra literária, sempre com
um pessimismo quase kafkiano.
Satã, ocupando o papel de porta-voz do próprio Mark Twain,
traz provocações a respeito daquilo que somos e acreditamos. Questiona, por
exemplo, o uso da palavra desumano quando é dita por um dos garotos, depois que
um bêbado agride um cão sem motivo algum. Lembra que nenhum ser no universo é
capaz de tantas barbaridades, a não ser, justamente, o humano, o que torna essa
palavra no mínimo contraditória.
Em outro trecho, ele reflete a respeito da relação entre
inteligência e felicidade. Diz que apenas os que têm uma visão extremamente
distorcida da realidade conseguem ser realmente felizes. Os demais, quanto mais
inteligentes forem, mais tristes serão, pois perceberão o que o mundo realmente
é: um grande palco de injustiças e desigualdades.
Por fim, no trecho que pessoalmente considero o melhor do
livro, Satã começa a questionar se Theodore realmente existe ou se ele é apenas
o fruto de um pensamento. Neste, que é o último diálogo do livro, o anjo
decaído reflete sobre o que é realidade e apresenta o conceito de múltiplas
dimensões.
Muitas das temáticas do livro viriam a ser abordadas
posteriormente por escritores existencialistas, como Jean Paul Sartre, ou mesmo
no campo da psicologia, por Jung.
No ano de 1985, foi lançado o filme As aventuras de Mark
Twain, um desenho animado em stop motion no qual o autor e três crianças - Tom
Sawyer, Huck Finn e Becky Thatcher - viajavam por diversas obras do escritor.
Há a cena baseada em “O estranho misterioso”, que é bastante perturbadora para
uma animação. Confira o vídeo:
Bruno Inácio
Jornalista, especialista em Literatura Contemporânea e em
Gestão Cultural e estudante de Filosofia e Direitos Humanos. É autor dos livros
"Gula, Ira e Todo o Resto" e "Coincidências Arquitetadas".
Gosta de rock clássico, Simpsons e do Darth Vader. Não gosta de beterraba, da
carreira solo do John Lennon e de livros de autoajuda.
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