Numa Sexta-feira Santa
Sentia,
perfeitamente, os atrativos de Abgail; eram muitos, da cabeça aos pés.
O sorriso
dela era um fulgor, boniteza de esbanjar; e os seios? “Vige Maria!”. Mas,
somente sentia, não imaginava, muito menos com maldade.
Abgail era prima-carnal dele, filha de
Socorro, mulher de respeito, bondosa, quase sua mãe, irmã do pai que fora um
sujeito bom de verdade: “Deus o tenha no reino dos céus”. Daí, nunca havia
pensado coisas estranhas a respeito da prima, e nem podia ser diferente, menina
de bons modos, bem educada em casa e no colégio, perto de se formar em
professora, 17 anos.
Os dois
eram assim, assim, desde novinhos, ela com sete; ele com nove; correram picula,
tomaram banho de rio. Nesse tempo Abgail nem ligava mais para bonecas,
preferindo as peraltices pelo terreiro, pelo quintal, entre as plantações; e ele sempre junto dela.
Depois foram morar bem longe um do outro, ficaram adultos. O tempo correu e
agora residiam aqui; ela, num bairro; ele no centro da cidade. Abigail ficou
muito bonita, mais do que quando era menina, um conjunto de formas que só
vendo. E ele sentia isso. Nunca imaginara que a prima se embelezasse tanto. A
tia Socorro era muito bonita, mas nem se comparava à filha.
Por que
Abgail era sua prima carnal? Se pelo menos fosse parente em terceiro grau...
Mesmo em segundo. Sendo carnal ele não podia nem devia dar uma arriscada, um
piscar de olho. Nem pensava nessas coisas, mesmo com os impactos da beleza da
moça, de seus atrativos cheirando a
perigo. Ademais, ele era um rapaz de bons princípios, educado num colégio de
Beneditinos onde aprendera o significado do sinal da cruz, muita matemática,
ler bem, escrever bem. Mas, não sabia por que, deu para sonhar com Abgail. Eram
sonhos estranhos, cheios de sensações; acordava abatido, afogado de gozo e
incriminando a hipótese de tudo aquilo transformar-se em verdade. Parecia
astúcia do diabo tentando uma ignomínia entre ele e a prima. Não podia. Nem
pensar.
Numa
sexta-feira da Paixão ele foi pegar o dendê em casa de Socorro; chegou cedo, a
tia havia saído para a Adoração ao Santíssimo, e o marido dela, munido de anzol
e capanga, saíra para pescar numa cidade vizinha e só voltaria no dia seguinte.
A prima ficou sozinha em casa, cuidando das coisas; vestia um short curtinho e
uma blusa de seda com as bordas amarradas acima da cintura mostrando o umbigo
miúdo; descalça, o cabelo preso em popa, pequenas mechas soltas caindo pelas
orelhas.
Na chegada
ele beijou o rosto de Abgail que passou a boca rente a sua; sentiu cheiro de
chiclete, ficou apreensivo; lembrou-se dos sonhos e admitiu uma influência maligna,
mas não maldou nada, além disso. Lembrou-se do pai que devia se encontrar no reino dos céus; a
tia estaria rezando na igreja, toda envolvida com as coisas divinas, ajoelhada
frente ao altar.
Abgail
conversava alegre, fazia perguntas, destampava e tampava panelas pelo fogão,
cruzando as pernas, a cintura delgada com as bordas da blusa amarradas,
formando um nó com as pontas soltas. Mas era sexta-feira da Paixão, dia
santificado, por isso nem podia sentir certas coisas, quanto mais pensá-las.
Depois
Abgail entrou para o quarto. “Vem pra cá”, disse ela, naturalmente, a fala
meiga, soltando o cabelo. Em seguida deitou-se na cama e pendurou os pés para o
chão, realçando as coxas avolumadas. “Sente aqui”, acrescentou ela.
Pedro
sentou-se. Socorro chegaria a qualquer momento. Aí Abgail empurrou com a ponta
de um pé a porta do quarto. O pai estaria olhando-o lá do reino dos céus. Para
os dois. E se pegasse no sono! A tia o flagraria na cama com Abgail. Ela de
short bem curto ou já nuinha, desgrenhada, exausta, bulindo os dedos dos pés.
No altar
da igreja onde Socorro rezava, teria um Cristo enorme pregado numa cruz preta
de jacarandá, a fronte arrodeada de espinhos; aos pés da cruz, a mãe de Jesus,
debruçada, com um manto roxo, chorando em silêncio.
Abgail
estava agitada, cheirando a suor, os seios pulando dentro da blusa de seda
atada à cintura; ele nem tinha ânimo para libertar-se da tentação; Socorro
chegaria a qualquer instante, batendo na porta da rua. Abgail teria trancado a
porta da rua? Se a tivesse somente encostado, a tia entraria calada direto para
o quarto dela, trocar de roupa. E se antes disso ela procurasse por Abgail,
como costumava fazer! E se ela fosse logo para o quarto onde os dois se
encontravam! “Tentação do diabo”. Só não temia o pai dela, o sabia na vizinha
cidade, atrás de peixes.
O corpo de
Abgail era morno e cheirava a suor; os seios dela haviam se libertado da blusa
já retorcida sobre a barriga delgada; o short atirado à toa pelo chão, junto a
seus pés. O pai, no reino dos céus, desaparecera. Nem para dar um jeitinho e
afastar a tentação do demônio. Sozinho naquela fogueira cheirando a chicletes e
a suor, a outras coisas perigosas. Como conseguiria energia para libertar-se da
situação? No momento, só de cueca, arfando como burro arrochado.
E era
sexta-feira da Paixão. “Tentação do diabo”, entre ele e Abgail, o mesmo sangue,
filha da irmã do pai.
Era cada
sonho porreta. Acordou arrasado.
(LINHAS INTERCALADAS - 2ª Edição 2004)
Ariston Caldas
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário