Compras e Vendas. Os Mascates
Até
hoje não sei como a notícia chegava à minha casa. Não havia telefone, não havia
rádio, nem propaganda de alto-falante; havia distância, mas a grande notícia
vinha. Nunca perguntei como, por isso fiquei sempre na ignorância e ainda hoje
é um mistério para mim. O certo é que ouvia minha mãe dizer: amanhã cedo vamos
ver seu Gabriel, ele chegou. Esta frase para mim, menina, era como se me
anunciassem uma visita ao céu. Eu vibrava de contentamento. À noite, ia dormir
embalada na alegria do grande passeio que ia dar. Pela manhã cedinho, era
acordada: “levante, está na hora!”. Que despertar maravilhoso eu sentia.
Tínhamos de sair antes que o sol esquentasse, porque a caminhada era grande.
Tomado o café, partíamos para o que eu considerava a grande aventura. Minha mãe
comigo pela mão, a empregada com a minha irmã no braço, e um moleque para
trazer os embrulhos. Da Rua Paulino Vieira, onde eu morava, até à Caixa d’Água,
a esticada era grande. O sol ainda estava baixo. Íamos a pé, acompanhando a
estrada de ferro. Logo no início, um grande empecilho: um alto pontilhão sobre
o qual passava o trem. Aí parávamos e minha mãe ficava à espera de alguém que
nos desse a mão e ajudasse uma a uma a pisar sobre os grandes e altos dormentes
do pontilhão. Essa ajuda era fácil, porque a estrada era movimentada e nunca
faltava um passante musculoso e prestativo. Vencida esta primeira etapa, a
caminhada era feita sem tropeços, e eu adorando aquela aventura.
Diversas casas se estendiam no alto do barranco que ladeava a estrada de ferro
por onde passávamos. Esse trecho era chamado de Rua da Linha, por causa da
linha férrea, e hoje corresponde à Avenida Ilhéus. A casa de seu Gabriel ficava
mais adiante, na Caixa d’Água, então apenas uma ruazinha pouco mais além da
atual Igreja de São Judas Tadeu. Enquanto andava, a minha alegria era pular
sobre os dormentes e catar malmequer e florzinhas outras que cresciam no mato,
ao longo do caminho. E assim, chegávamos à casa de seu Gabriel Bittar.
A
freguesia que aos poucos ia chegando, era recebida com toda a afabilidade pelo
comerciante, no balcão da loja de tecidos que ficava na sala da frente de sua
residência. Seu Gabriel, não sei se era sírio ou turco, tinha cabelos
grisalhos, bigode, e fala com sotaque. As prateleiras estavam cheias de peças
de tecidos que ele ia buscar diretamente em São Paulo. Ele vendia desde os
tecidos de algodão, tricolines, algodãozinho, morim, cretones, até às mais
finas cambraias de linho. Linho belga importado. Tudo ali era mais barato do
que no centro da cidade. Uma cadeira era oferecida à minha mãe porque as
compras eram demoradas, e ela, sentada, ia fazendo as suas escolhas. Metros e
metros de tecidos para a roupa das empregadas, para panos de prato, lençóis,
fronhas. Havia também boas toalhas de banho e de mesa prontas. Seu Gabriel
também trazia bolsas de couro e outros artigos que estivessem em moda e lhe
fossem encomendados.
Na
loja, nenhuma distração havia para mim, apenas ficava sentada num banco ao lado
da parede, olhando a entrada e saída da freguesia com seus enormes embrulhos, e
o puxa-estica dos preços na hora do pagamento. Feitas as compras, ficava às
vezes a lista das encomendas que seu Gabriel devia trazer da próxima viagem a
São Paulo. A volta para casa era feita obedecendo o horário do trem: muito
antes que ele passasse e atendendo também ao sol, antes que esquentasse muito.
Para mim, valia o passeio, que eu achava uma maravilha.
Seu
Gabriel não vendia sedas, estas eram compradas nas mãos dos mascates já
conhecidos, vindos do Rio e São Paulo, que traziam para vender na cidade sedas
puras lindíssimas, gazes as mais leves, rendas lindas para vestidos, perfumes
franceses legítimos, vestidos prontos, meias finíssimas. Esses mascates eram
dois lituanos, um de nome Maurício e outro irmão de seu Elias Grimann, dono
do Elite Bar, dois outros de origem russa e um libanês. Eram homens que se
apresentavam bem trajados, de terno, gravata, pessoas tratáveis e que traziam
as suas sedas em grandes malas de couro carregadas por um empregado. Alguns
comerciantes, também de origem europeia, apareciam às vezes vendendo lindos
casacos de peles, estolas de arminho e raposa ártica, casacos de astracã. Era
um luxo que o clima da cidade não permitia. Mas que o dinheiro proporcionava às
ricas senhoras da época, que tinhas nos cacauais o seu império.
Também apareciam vendedores de joias, homens credenciados que levavam em
casas escolhidas as suas mercadorias para vender, bem como os japoneses que,
vez por outra, apareciam vendendo bonitos colares de pérolas artificiais,
outros vendendo brinquedos e ornamentos de sua arte, o origami.
Assim, as famílias ricas de Itabuna podiam se dar ao luxo do bom e do melhor
sem precisar viajar para comprar, porque a fama do dinheiro da cidade atraía
comerciantes que queriam fazer bons negócios.
Outro
vendedor que frequentemente aparecia na cidade era o mascate de rendas de
bilros ou de almofada. Aqui chegava, vindo do Ceará e Sergipe, o Norte como
chamavam na época. Esse mascate ia de casa em casa, carregando grande valise de
couro numa mão, e na outra um volumoso embrulho amarrado por grosso barbante. O
seu comércio constava de peças de bonitas rendas, largas ou estreitas, com
elaborados desenhos, confeccionadas pelas artesãs do “Norte”. Além das peças de
rendas, traziam também, feitos com bilros de almofada, panos para decoração de
móveis dos mais variados tamanhos e formatos: compridos, ovais, redondos,
quadrados. Panos para bandeja, ricas toalhas de mesa e colchas. Ao lado das
rendas, vinham também toalhas de tecido, bordadas à máquina no chamado “ponto
batido”, nos mais lindos coloridos, com motivos de frutas e de flores. Tinha
desde as chamadas toalhas de chá até as grandes para banquetes. Trabalhos
primorosos como só as mãos treinadas das rendeiras nordestinas podiam confeccionar.
Dos mascates do Nordeste, hoje poucos ainda circulam na cidade.
Mas o
comércio de Itabuna não era só isso. Além do cacau, principal fonte econômica
do Município, a cidade vivia também do seu grande, forte e permanente comércio
de tecidos, calçados, presentes e artigos outros, sem falar nas grandes casas
de ferragens como a dos senhores Nicodemos Barreto e Júlio Sergipano, grandes
armazéns comerciais como os do Sr. Astério Rebouças, João Franco e outros. As
lojas de tecidos eram sortidas de artigos finos e variados, e muitas outras
havia de tecidos populares. “O Crisântemo”, do Sr. Francisco Benício, era casa
conceituada e uma das mais antigas; o ”Parc Central”, do Sr. Carlos Maron; a
“Casa Stella”, o “Beija Flor” – um misto de armarinho e loja de brinquedos -, a
“Casa Brasil”, dos irmãos Kauark; a loja do Sr. Augusto Andrade, de grande
conceito e artigos variados, inclusive para presentes, eram conhecidas. O Sr.
Francisco Fontes tinha também grande loja de tecido popular. A cidade possuía ainda
boas livrarias, como a de seu Guedes e a “Agenciadora”, esta mais de artigos
escolares. Boas farmácias atendiam à população, com a “Drogaria Azevedo”,
do Sr. Benigno Azevedo, grande e sortida, que atendia não só à cidade como aos
distritos, e ficava numa das esquinas da hoje Avenida do Cinquentenário,
naquela época rua J. J. Seabra. Nessa mesma rua, duas outras farmácias eram
muito procuradas: a “Caridade”, do Dr. Nilo Santana, e a de seu Tourinho. O
doutor Nilo reservava um dia da semana para aviar, de graça, receitas para os
pobres que o procuravam.
O
comércio de Itabuna era ativo. Iniciado com os sírio-libaneses e sergipanos,
foi enriquecido e cresceu com o trabalho de muitos outros comerciantes que se
empenharam, como até hoje, pelo progresso da cidade. Aqueles mascates vinham
apenas complementar com seus artigos de luxo importados, suas sedas puras,
perfumes, peles, o que faltava para o requinte das pessoas mais endinheiradas.
Até costureiras de alta-costura abriram aqui suas casas, como madame Débora e
madame Pepita, procuradas pelas senhoras da sociedade. Além destas, havia ainda
o ateliê da senhora Adélia Campos, bem instalado, com uma vitrina, e que
atendia a uma grande freguesia. Este ficava na Rua Paulino Vieira, numa esquina
bem em frente da atual Perfumaria Clipper.
Com
os requintes que o dinheiro então proporcionava, a vida social e cultural de
Itabuna foi movimentada. Aqui chegaram a se apresentar, no teatro do Cinema
Elite, grandes companhias teatrais, como as de Procópio Ferreira, Joracy
Camargo e Alma Flora. Declamadoras como Margarida Lopes de Almeida aqui
apresentaram a sua arte. Euríclides Formiga Lotou o recinto do teatro do Cinema
Elite.
Exposições de pintura, como a de Santa Rosa e outros; de
fotografias artísticas, como a de Brasilino Nery; cantores, violinistas e
pianistas de destaque aqui se exibiram, nos salões do Itabuna Clube,
demonstrando que a sociedade de Itabuna vivia realmente uma “era de ouro”. A arte
deleitava a sociedade que anos atrás
podia gozar desse privilégio de assistir a belos espetáculos.
Esse
era um tempo de Itabuna rica, cuja fama ia além dos seus limites e se espalhava
por todo o Estado e vizinhanças, no auge dos cacaueiros de frutos-de-ouro.
Itabuna de uma época que dá saudades, mas que já passou.
(RETALHOS)
Helena Borborema
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HELENA BORBOREMA - Nasceu em Itabuna. Professora
de Geografia lecionou muitos anos no Colégio Divina Providência, na Ação
Fraternal e no Colégio Estadual de Itabuna. Formada em Pedagogia pela Faculdade
de Filosofia de Itabuna. Exerceu o cargo de Secretária de Educação e Cultura do
Município. (A autora)
Conhecida professora itabunense, filha do Dr. Lafayette
Borborema, o primeiro advogado de Itabuna. É autora de ‘Terras do Sul’,
livro em que documento, memória e imaginação se unem num discurso
despretensioso para testemunhar o quadro social e humano daqueles idos de
Tabocas. Para a professora universitária Margarida Fahel, ‘Terras do Sul’ são
estórias simples, plenas de ‘emoção e humanidade, querendo inscrever no tempo a
história de uma gente, o caminho de um rio, a esperança de uma professora que
crê no homem e na terra’. (Cyro de Mattos)
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