Cultivamos fantasias autocomplacentes no mundo do trabalho,
nas relações sociais e nos afetos. Depois nos enfurecemos – ou desabamos –
quando os fatos nos contrariam
IVAN MARTINS
22/03/2017
Eu nunca experimentei, mas dizem que namoros à distância são
complicados. Falta convívio, sobram inquietações, algumas experiências
importantes são atrofiadas. Mesmo em tempos de Skype e WhatsApp, a intimidade
de quem se relaciona à distância é incompleta. Um corpo apaixonado requer o
toque do outro corpo. Na ausência desse contato, as relações são limitadas. Por
isso os namoros à distância tendem a ser temporários. Ou as pessoas se mudam
para o mesmo lugar ou o romance acaba.
Pensei nisso na semana passada, quando uma moça me contou
que seu namoro acabara repentinamente, durante uma conversa por Skype. O rapaz
está morando na Europa e anunciou que ficará por lá, indefinidamente. Ela
estava devastada. Imaginava que ele voltaria nos próximos meses ou que a
convidaria para encontrá-lo. Ele, obviamente, tinha outros planos e
sentimentos.
Minha primeira reação a essa história foi maldizer o abismo
social que separa os dois continentes e torna a vida na Europa tão atraente
para boa parte dos brasileiros. Mas, depois de ouvir com atenção, essa
impressão se desfez. Ficou claro que o problema não estava na distância
civilizatória entre o Brasil e a Europa, mas na distância entre o que a moça
imaginara e a realidade. Ela havia inventado um namorado para si mesma. O que o
sujeito fez no Skype foi comunicar a ela que a ilusão estava oficialmente
encerrada.
Alguma leitora dirá que é impossível inventar um namorado, e
estará errada. Homens e mulheres têm capacidade de acreditar em qualquer coisa
que lhes dê conforto ou alivie sofrimentos. As relações imaginárias são uma
delas. Quando falta um relacionamento real, as pessoas podem se enrabichar com
o cobrador de ônibus, com a gerente do banco ou até mesmo com aquela prima – ou
primo – que aparece de visita uma vez por ano. Basta a pessoa dar atenção ao
carente para que ele se imagine numa relação.
O que aconteceu com a protagonista desta história foi
diferente. Ela passou algumas semanas com um homem que estava de partida e
imaginou que o combustível emocional seria suficiente para aquecer dois
corações à distância. Estava errada. Assim que chegou ao outro lado do Atlântico,
o rapaz começou a mudar de atitude. De apaixonado foi passando a distraído, e
logo a impaciente. As trocas de WhatsApp escassearam, e as conversas semanais
por Skype se tornaram burocráticas. Ela pedia atenção e sentimento. Ele
oferecia pressa e indisfarçável frialdade. No aniversário de um ano da viagem,
encerrou a farsa. O que para ele fora apoio emocional num momento de transição
se transformara para ela em esperança de vida comum. Não poderia haver
sentimentos mais desencontrados.
Se o relacionamento entre eles era imaginário, a dor que ela
sente é real. Está arrasada e ressentida. Acredita que perdeu um ano de vida se
dedicando a um egoísta. É um julgamento duro, provavelmente correto, que ajuda
a superar seu sofrimento. Mas ele contém um elemento de ilusão. Culpar a
fraqueza e a ambiguidade do outro a isenta de pensar em sua própria
responsabilidade no episódio. A base da relação era frágil, e o rapaz deu
vários sinais de que desejava rompê-la, mas ela persistiu no namoro à
distância, acreditando e insistindo, até que ele tornou a fantasia impossível.
Ela tem direito de se sentir enganada, mas talvez devesse admitir que foi
cúmplice da encenação.
Descontadas as particularidades – a Europa, o Skype, o tempo
–, essa história guarda lições para nós todos. Somos especialistas em
enxergar aquilo em que queremos acreditar e mestres em ignorar evidências que
nos contrariem. Cavalgamos ilusões com mais facilidade do que lidamos com a
realidade. Cultivamos fantasias autocomplacentes no mundo do trabalho, nas
relações sociais e nos afetos. Depois nos enfurecemos – ou desabamos – quando
os fatos nos contrariam. Se os nossos problemas se resumissem aos que agem mal
conosco, teríamos pouco com que nos preocupar. O que mais atrapalha a nossa
vida são os nossos enganos.
Não interessa saber se o namoro é à distância, mas se ele é
real. Se a pessoa do outro lado da linha telefônica – ou do outro lado da sala
– faz com que você se sinta amada ou amado, tudo bem. Esse é o antídoto contra
o autoengano. As relações que satisfazem emocionalmente costumam ser
verdadeiras. Problemas e complicações são inevitáveis, mas, quando se olha nos
olhos do outro – mesmo desapontado, mesmo depois de uma briga, mesmo na tela do
computador – é preciso encontrar cumplicidade e reconhecimento, não indiferença
ou desatenção.
O relacionamento que a moça me relatou não resiste aos
filtros de realidade. Um dia talvez tenha sido verdadeiro, mas havia tempos não
passava de ilusão. Por pior que tenha agido antes, o rapaz foi correto ao
encerrá-lo. A moça está gostando de sentir-se vítima, mas faria mais por si
mesma se admitisse seu próprio papel na trama. Abandonar-se à autopiedade é uma
forma conhecida de prazer, mas, assim como os namoros imaginários, não leva a
lugar nenhum.
IVAN MARTINS
Colunista de ÉPOCA
Autor do livro Alguém especial, escreve em epoca.com.br
às quartas-feiras
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