Coroa do Sacro Império Romano Alemão. Atualmente exposta na
Schatzkammer (no Tesouro do Palácio Imperial de Hofburg) da capital austríaca.
Alguns pingos em alguns is
20 de março de 2017
Péricles Capanema
De alguns anos a esta parte, movimentos e partidos políticos
de fundo nacionalista vêm ganhando força em países importantes. Assistimos a
uma enorme reviravolta no espírito público, que pode determinar rumo diferente
ao que o mundo vem trilhando, aos trancos e barrancos, desde o fim da II Guerra
Mundial. Aonde chegaremos?
A corrente não é una, apresenta características díspares; e
não apenas em aspectos acidentais, mas nos nacionalismos se percebe um fundo
comum, sobre o qual tratarei de forma sucinta. Nacionalismo vem de nação. E
nação, de natio, natus, etimologicamente, é o conjunto dos que nasceram em
determinado território.
Nação foi palavra inicialmente utilizada pelos estudantes
das universidades medievais, em especial a de Paris. Ali eles se organizavam em
grupos, falavam a língua materna entre si, eram regidos pelas leis dos próprios
países (ou regiões). Existiu a nação da Alemanha, a nação da Inglaterra, a
nação normanda. E outras ainda.
A palavra não designou apenas agrupações de estudantes. Por
exemplo, em fins do século XV, surgiu o acréscimo nação em realidade política
de enorme importância: Heiliges Römisches Reich deutscher Nation (Em
tradução literal, santo império romano da nação alemã; em português, o Sacro
Império Romano Alemão). O Sacro Império foi oficialmente extinto em 1806 por
Napoleão. É importante notar que ali foram extintos direitos históricos,
autonomias multisseculares; essa organização política de raízes medievais dificultava
planos do Corso, centralizadores e autoritários.
Por que lembro fatos antigos? Para melhor compreendermos no
presente o fenômeno nacionalismo. Quando a palavra nação se difundiu, a Era
Moderna ainda não havia começado. No temperante ambiente da Cristandade era
comum os homens viverem distantes do absolutismo, da centralização e do
autoritarismo unificador. E de delírios de grandeza, própria ou
coletiva. O medieval, respirando ares de civilização cristã, não
desatinava atrás da busca obsessiva da própria grandeza, da de sua família,
região ou reino. Tinha um olhar temperante para as coisas temporais,
condicionado ao “vale de lágrimas”. E sua atenção se fixava de imediato e
preferentemente na família e na região. O imperador do Sacro Império dispunha
de poucos poderes diretos. Sem ser conhecido explicitamente, o princípio de
subsidiariedade, hoje o pilar central da doutrina social católica, embebia a
sociedade. Mesmo em Paris, capital da França, a nação alemã dos estudantes
dispunha de grande autonomia no governo próprio.
Com o avanço do Estado Moderno, nação foi ganhando
significado mais denso. Passou a significar em geral comunidade estável de
indivíduos, historicamente determinada por origem, costumes, religião e língua
comuns. Daí a defesa do território, das fronteiras, da língua, da cultura, da
raça, dentre outros. Tais elementos, ainda que importantes, de fato eram
acidentais; o fundamental sempre foi o sentimento do vínculo comum, a
consciência de pertencer a uma entidade com interesses próprios e necessidades
peculiares. O Estado é sua forma política normal.
Surgiu o nacionalismo como o conhecemos agora, fruto típico
dos Tempos Modernos. Medra bem nos miasmas do antropocentrismo potencializado
com a Renascença. A nação e até o Estado passaram a ser alucinados ideais de
grandeza humana. Não eram mais realidades benéficas, mas subsidiárias à
família, na procura da perfeição humana em todos os níveis. A nota jacobina, do
Estado como o grande instrumento a conquistar para impor um suposto programa de
salvação nacional, sempre esteve muito presente.
Noto de passagem que é louvável defender a identidade
nacional e lutar pela grandeza nacional, com base em doutrina razoável e
conduta sensata, julgando o Estado instrumento útil, necessário e importante
para a pessoa e a família alcançarem seus fins.
Autoritário, centralizador, populista, confiante no uso da
força, Napoleão Bonaparte arrastou atrás de si grande parte da França, até que
suas derrotas o jogaram, exilado, em Santa Helena.
E volto ao fluxo principal. Não foi assim com o nacionalismo
em várias de suas vertentes importantes: pessoa, família, região passaram a ser
meras partes de um todo coletivo, de valor absoluto. A exacerbação coletivista
desemboca no totalitarismo, o que historicamente aconteceu em várias ocasiões. “Tudo
no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado”, foi lema do fascismo
italiano.
Mencionei Napoleão Bonaparte. Volto a ele, exemplo de
nacionalismo, enorme influência. Chefe carismático, ele uniu a aspiração da
pátria agigantada com os ideais da Revolução Francesa. Centralizador,
ditatorial, adversário dos direitos históricos de famílias, regiões,
corporações, agiu contra sociedades intermediárias de várias naturezas,
colocadas entre a pessoa e o Estado. Procurou subjugar e utilizar a Igreja para
seus objetivos de ordem e grandeza nacionais. A ele se aplicaria bem a
expressão famosa, falsamente atribuída a Luís XIV: “L’État, c’est moi”.
Nas linhas gerais, o bonapartismo — regime republicano imperial, Estado
nacional com Executivo forte e centralizado, populista, recurso frequente ao
plebiscito — foi a tintura mãe dos nacionalismos.
Seus traços principais continuam até hoje. Um deles, ausente
no bonapartismo, foi acrescentado em alguns nacionalismos: o antissemitismo,
que pode ser visto como espécie do gênero xenofobia, presença constante nos
nacionalismos. O estrangeiro (ou o corpo estranho), eis o inimigo do coletivo
nacional, sempre bom e vocacionado para a grandeza.
Bonaparte prometeu restaurar a ordem posta em frangalhos
pelas convulsões sociais do período, implantar a racionalidade e a eficiência
no governo, eliminar os “lados ruins” da Revolução Francesa. Perseguiu os
monarquistas, recusou o Rei — isolado em Londres — e a velha nobreza dispersa
pela Europa, tidos por corruptos e decadentes. Desprezava a cultura refinada e
aristocrática do Antigo Regime. Autoritário, centralizador, populista,
confiante no uso da força, arrastou atrás de si grande parte da França, até que
suas derrotas o jogaram, exilado, em Santa Helena.
Historicamente, o nacionalismo atraiu simpatias de
católicos, conservadores, tradicionalistas, de correntes favoráveis à livre
iniciativa e ao empreendedorismo. Foi visto como adversário do
internacionalismo socialista (inimigo da identidade nacional) e do
igualitarismo revolucionário (inimigo das desigualdades de base natural). Era
muitas vezes considerado baluarte na defesa da ordem ameaçada pela agressão da
desordem revolucionária. Milhões de seus seguidores, gente de bem, colocaram na
sombra os traços coletivistas, centralizadores e autoritários, a negação
teórica e prática do princípio de subsidiariedade. Aderiram ao que lhes parecia
ser a única defesa eficaz contra a avalanche revolucionária que ameaçava levar
de roldão a moral, instituições veneráveis e a civilização.
Foi um falso dilema demolidor. Para milhões, acarretou
tragédias das mais variadas naturezas. Podem voltar a acontecer. É momento de
maturidade, exame, argúcia, equilíbrio, isenção. Claro, não esgotei assuntos,
ventilei-os; nem poderia ser diferente em artigo limitado por espaço. Espero,
contudo, ter fornecido material útil para reflexão. Em resumo, procurei cumprir
a promessa: pôr alguns pingos em cima de alguns is.
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