Cachoeiras e sonolência
Uma sequência de fatos "cachoeirável" será sempre
motivo para alardes. Se deixamos de nos importar com a gritaria e com o que
continua acontecendo, manifestamos assim nossa tácita anuência.
Em recente visita aos meus alfarrábios, encontrei um conto
interessante, que passo a resumir para o prezado leitor.
Depois de observarem atentamente o comportamento noturno de
uma pequena cidade, dois ladrões discutiram as possibilidades de êxito para o
assalto. Como todas as casas tinham cachorros, o primeiro ladrão objetou que o
da casa acordaria o dono. Mesmo se agissem cautelosamente, eles não teriam
escapatória. O outro, mais experiente e atento à psicologia, afirmou que o
latido do cachorro seria ótimo para o assalto. Ante a surpresa do comparsa,
explicou:
— Quando o cachorro da casa latir, os da vizinhança vão
acompanhar. Os policiais não terão como descobrir o local do assalto, pois
haverá cães latindo em todas as casas. Os latidos vão até ajudar, abafando os
ruídos que fizermos.
Concordaram que a ideia era genial, acertaram os detalhes da
investida, e logo confirmaram que a confraria canina latia pra valer. Tudo
corria bem, e eles nem se preocuparam mais com os ruídos que faziam. Aos poucos
os cachorros foram parando de latir. Depois de alguns minutos chegou a polícia
e os flagrou com a mão na massa. A caminho da delegacia, não conseguiam
entender o que dera errado, e por quê.
Perguntaram, e o policial explicou:
— Vocês não são os primeiros. Acontece que todos aqui estão
acostumados com o latido dos cachorros, e continuam dormindo. Mas para o nosso
trabalho, basta observar onde está o primeiro cachorro que parou de latir. Os
outros vão parando de acordo com a proximidade, na mesma ordem em que
começaram. Não dá para errar, nós sempre achamos o local do assalto.
Não sei se na prática as coisas funcionam exatamente assim,
mas interessa-me o fenômeno de início e fim da sinfonia canina. Cabe ao
primeiro cachorro despertar o dono da casa.
Neste caso ele age como o spala de
uma orquestra, e num crescendo esta atinge o seu tutti. Se o
dono da casa não liga, o cachorro toma os intrusos como amigos, silencia seu
instrumento vocal, e todos os outros o vão acompanhando. Se non è vero, è
bene trovato, e isso me basta para fustigar certo tipo de cachorros.
(Por quê?! Que culpa têm os cachorros? Você parece
perseguidor de cachorros)
Os cachorros não têm culpa. Estão ali para latir, e cumprem
sua tarefa. De quem é então a culpa? Sua, meu caro leitor. Não, não adianta
interromper a leitura e fugir de fininho, com ares de ofendido, porque a coisa
é assim mesmo. Quer que eu explique?
Examine bem os fatos. Sendo o dono da casa, você compra um
cachorro bravo para que o latido dele o acorde quando se apresente o intruso. O
cachorro late o quanto pode, consegue até a ajuda prestimosa dos outros. Se
você não acorda, ou volta a dormir depois que acordou, é sinal de que achou
tudo normal. O cachorro cumpriu o seu papel, e a culpa só pode ser sua.
Entendeu bem o raciocínio? Pois então vamos a uma aplicação
concreta.
Algum tempo atrás, a imprensa passou a divulgar o “caso
Cachoeira”. Falou-se tanto de cachoeira, com tantas novidades diárias, tantos
comentários, tanta piada para todos os gostos – uma verdadeira sinfonia canina
anti-cachoeira – que aos poucos as pessoas ficaram saturadas, desinteressadas,
sonolentas. Tanta insistência em cachoeira tornou irritante qualquer alusão a
água escorrendo – queda d’água, enxurrada, cascata, corredeira, torneira aberta
– servindo de sinal para a imprensa silenciar sobre isso e mudar de assunto.
Aos poucos a mídia parou de matraquear, e o distinto público foi esquecendo
cachoeiras e escândalos.
Não se viu uma solução adequada para as
irregularidades, mas a gritaria acabou e tudo voltou aparentemente ao normal.
A propósito, o que foi feito do tal Cachoeira? Não sabe? Eu
também não sei. Nem o pessoal da imprensa, tão zeloso em divulgar as
cachoeirices, provavelmente não saberá informar-nos de pronto, sem consultar
algum arquivo ou outras fontes jornalísticas. Transfira esses dados para
mensalão, Celso Daniel, lava-jato, petrolão…
Uma sequência de fatos “cachoeirável”, como qualquer uma
dessas, será sempre motivo para alardes. Se deixamos de nos importar com a
gritaria e com o que continua acontecendo, manifestamos assim nossa tácita
anuência. A imprensa cumpriu o seu papel, pelo menos enquanto o assunto dava
ibope. Mas não reclamamos quando pararam de nos alertar, e assim contribuímos
para os interessados arquivarem o assunto. Não cumprindo nosso dever, não
reclamando, não protestando, temos que aguentar as consequências. E os
cachoeiras da vida nos agradecem.
Jacinto Flecha,
médico, cronista e colaborador da Agência Boa Imprensa.
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