O Menino e o Júri do Menino
Cyro de Mattos *
Era uma festa. A notícia vinha como manchete na primeira
página do único jornal da cidade. Repetia-se pelo alto-falante do Serviço
Regional de Propaganda Comercial. Na semana do júri era comentado, nos mínimos
detalhes, o crime de morte que o homem aparentemente calmo havia cometido. Pela
boca do povo na feira, rua do comércio, barbearias e alfaiatarias. Na
privacidade dos lares pelo chefe de família exemplar. O homem ia pegar muito
anos de cadeia, não merece outra sorte quem mata uma mulher indefesa quando
estava dormindo, diziam os que tomavam partido pela condenação do réu. Uma
mulher infiel deve pagar com a vida, a honra do homem nesses casos não deve
ficar manchada, afirmavam os que queriam que o réu fosse absolvido. O padre na
missa das sete, no domingo, rogava a Deus que iluminasse os jurados que iam
compor o conselho de sentença para que julgassem de sã consciência. Aplicassem
a boa justiça, não absolvessem um criminoso nem condenassem um inocente. Na
dúvida, os jurados votassem a favor do réu, ele observava, os povos civilizados
vinham ensinando isso como sabedoria ao longo dos anos.
Um poeta do povo escrevia folhetos sobre o júri do marido
que matou a mulher na cama com sete facadas porque desconfiou que a esposa
tinha um caso com o vizinho do sobrado em frente. O bicho-homem enfurecido
sacou da peixeira afiada e desferiu golpes medonhos e ainda bebeu o sangue da
mulher infiel e amada, informava em versos pungentes o poeta popular. Vendia
centenas de folhetos nos pontos mais movimentados da cidade.
O pai levava o filho para assistir o júri.
Quem quisesse assistir sentado no auditório chegasse cedo à
sala maior do fórum onde aconteciam as sessões do júri. Nas cadeiras da frente
sentavam os parentes do réu e, no lado oposto, na mesma fileira, os da vítima.
O pai dizia que no júri estavam em cena duas tragédias: a da família da vítima
e a do réu. Às vezes, a mãe da vítima desmaiava quando o promotor de justiça
exaltava as qualidades da esposa que sempre se dedicara ao marido, vítima de
ciúme cego do réu que, no gesto covarde e traiçoeiro, ceifava a vida daquela
que sempre honrara o lar sagrado. O pai do réu, visivelmente inconformado com
as palavras proferidas pelo promotor, controlava-se na cadeira para não rebater
a ofensa ao filho, injusta sob vários aspectos. Passava o lenço no rosto,
temendo que o filho, tão jovem, fosse pegar trinta anos de prisão, passando
quase uma vida sem liberdade.
No meio do povo, do lado de fora, o pai colocava o filho nos
ombros. Queria que o menino observasse o juiz de direito interrogar o réu,
algemado, cabisbaixo. Olhasse bem o advogado daquele réu impressionar os
jurados com a palavra inflamada. Desfiar argumentos convincentes, que
arrancavam murmúrios das pessoas na sala abafada, até mesmo aplausos. O juiz
batia na sineta, pedindo ordem e silêncio, do contrário ia suspender a sessão
por falta de condições para prosseguir os trabalhos. O pai queria que o filho prestasse
atenção ao promotor de justiça, o seu jeito de olhar sério, acusando o réu que,
matando a mulher, matava a sociedade, que não quer ser ofendida da maneira
terrível como havia sido, afirmando que somente Deus põe e dispõe da vida desde
que o mundo foi habitado por seres humanos.
O quarteirão da rua onde ficava o fórum permanecia sempre
cheio de curiosos quando era dia de júri. O povo ouvia pelo alto-falante
instalado no poste da esquina as vozes que vinham da defesa ou da acusação lá
dentro do fórum. Os apartes se sucediam durante a sessão do júri, que entrava
pela madrugada quando se tratava de caso rumoroso. A certa altura do júri, se
algum gaiato ousasse dar uma gargalhada por causa de um aparte da defesa ou
acusação sem sentido, logo ia se arrepender. Podia ser autuado em flagrante por
crime de desacato à autoridade do juiz. Recomendava-se nessa hora guardar o
sorriso no bolso, mais tarde soltá-lo com os amigos no bar quando então fosse
lembrada a cara feia que o juiz fazia ante os aplausos arrancados da plateia
pelo advogado de defesa, com mais um aparte inteligente.
O pai queria que o filho fosse estudar em Salvador e
voltasse depois formado como advogado. Um advogado respeitado, desses que
impressionam com a oratória imbatível na tribuna do júri. Conseguem a soltura
do réu em crime hediondo quando todos afirmam que nem um milagre podia salvar
da cadeia o homicida. Advogado que não atua no júri não fica famoso, dizia o
pai, ressaltando que morre o homem fica a fama.
O pai não gostou quando anos depois o filho disse que podia
até ser um advogado importante, mas gostaria mesmo era de ser escritor. Um
contador de histórias.
*Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.
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