Memórias Infantis de Graciliano Ramos
Vê-se em Infância (1945), de
Graciliano Ramos, que a vida em seu começo ofereceu ao escritor de Alagoas
momentos de amargura e pessimismo. Forjada dos contatos com as pessoas de alma
pobre e as coisas em estado atrasado, disso resultando gestos e impressões com opressão
e violência, a vida não poderia nas raízes latejar o coração pequeno com
batidas leves. Assim, nas queimaduras de
uma poeira que se acumulava no cotidiano, o escritor de amanhecer áspero fora
acostumado muito cedo aos maus tratos e castigos.
Nascido em
Quebrangulo, interior de Alagoas, o autor de Vidas Secas (1938), romance
constituído de episódios autônomos, que podem ser considerados como contos, não
guardou nenhuma lembrança de sua cidade natal. Cedo se transferiu para Buíque
onde se criou numa zona de indústria pastoril, no interior de Pernambuco.
Muitos fatos dessa época estão arrolados em suas memórias infantis atravessadas
de dores e incompreensões. As
informações precisas sobre pessoas e fatos lá estão alinhavadas de maneira
pungente, expostas nas páginas ausentes de afeto, desde o amanhecer até quando
chegava a noite onde tudo é silêncio e a vida respira abafada na travessia
solitária formada com sonhos pesados, carentes de ternura.
O menino esteve
mergulhado certa vez numa comprida manhã de inverno, o açude cheio, a roça tingida
de amarelo e vermelho, as folhas pestanejando como cílios, os caminhos
estreitos virados em riachos. Convivendo com toda essa paisagem molhada, gostaria
que a natureza assim permanecesse na alma. Com a passagem dos dias, as árvores perderam
as folhas, o sol bebeu a água da terra, a natureza indiferente substituiu o que
era riqueza pela aridez das estações, que se introduzira na paisagem
caracterizada pela solidão e incômodos. A vida passou então a ser lenta, calcinada,
o dia envolvia tudo com forte calor, trevas densas ofuscavam claridades quando
chegava a noite para a longa duração.
Dessa poeira
cinzenta trouxe pedaços de pessoas, quase sempre más, ridículas, para o seu
mundo interior, o qual seria articulado depois em forma de ficção, operada como
permanente auscultação de um contínuo psicologismo angustiante, sofrido. Agora a
realidade produzida pelo artista da palavra se vestia com a roupagem do estilo
seco, focado numa humanidade despreparada para o afeto, acompanhada de momentos
toscos vinculados ao tormento. Na angústia fixada com a secura de alma, os sentimentos
nas memórias infantis e na ficção do autor de estilo descarnado, unindo o
passado ao clássico moderno, sem filiação aos tempos, avultam as atitudes de rancor,
seguidas vezes vão ser encontradas em suas personagens cercadas de atmosfera
sombria feita de niilismo devastador.
Encontram-se nessas
memórias da vida calejada com a hostilidade
as marcas pessimistas dos gestos fornecidos
pelos castigos que os pais afligiam ao filho, como bolos de palmatória,
chicotadas, cascudos e puxões de orelha, prisão na loja onde convivia com as
baratas, ratos e insetos. O pai e a mãe apresentavam-se grandes, temerosos, criaturas
desconhecidas como se fossem seres misteriosos. O pai tinha imaginação fraca,
era incrédulo, expandia a índole perversa com as surras cometidas no filho, a
mais absurda a que fora exercida com o cinturão grosso. A mãe tinha uma índole carregada
de sentimentos sem brandura, movidos com a dureza do cotidiano. Montava,
atirava, era categórica na atitude imperiosa que comanda.
O espírito infantil
de Graciliano Ramos recolheu-se na imagem de que a mãe era uma senhora hostil,
ranzinza, sempre a mexer-se com uma boca má, olhos perscrutantes que em
momentos de raiva se inflamavam com um brilho de loucura. Ente difícil que na
harmonia conjugal se afrouxava, amaciava as arestas, relaxava os dedos que
batiam na cabeça, dobrados, tendo a dureza de martelos. Pedaços de seus gestos foram
capturados pelo escritor nas rugas, olhos nervosos, boca irritada, mãos calosas,
nada suaves. O pai e a mãe eram dois seres que impunham obediência e respeito
com suas vozes absolutas.
Nesse ambiente familiar
de natureza hostil era comum que ouvisse no seu recanto pancadas, tiros,
pragas, ruído de espora, pisadas fortes de sapatões no piso gasto. Houvesse a voz
severa que comandava com atitudes enérgicas, às vezes vinha acompanhada de um
riso cavernoso, alastrava-se nos perigos ocultos alojados por todos os recantos.
O medo instalava-se assim como um gigante da alma numa paisagem interior de vida
iniciante indefesa, de estrutura insipiente, que hesitante sabia que era
impossível se armar com o auxílio de fraquezas; por isso mesmo não podia ter o
alcance de bons resultados com sentimentos leves, pensamentos doces, como
confessa o escritor em trecho de suas contundentes memórias da infância. (página
10, segunda edição, 1952)
Nesse círculo familiar,
em que o céu era terrível, natural que os seres e os objetos se tornassem irreconhecíveis,
absorvessem nos dias uma atmosfera difícil de fluir sem rancor, nesta circulava
uma humanidade formada com aflições e dissabores. Normal que a submissão de movimentos
infantis fosse uma constante, conduzida em suas circunstâncias críticas para
uma composição feita de negações e inércia, como soubera com forte tristeza nas
primeiras impressões que teve com a justiça através da surra tomada com o
cinturão grosso.
Na surra terrível
com o confronto desigual de forças, entre o algoz prepotente e a vítima
encurralada, a parte que lhe cabia no polo passivo de um processo cruel era
constituído de elementos que o atormentavam. Irrompiam das fissuras que tinham a
perda de suas características humanas, destituídas do estar gregário harmonioso
em família. Sem afeto e compreensão atuava no papel de réu como uma coisa
insignificante, semelhando um objeto inerte, admitindo o desempenho de sua função
como normal, por ser frágil, conformado quando então fosse castigado, apanhasse,
tomasse surras. Na que tomou com o cinturão grosso, foi antecedida de dura mortificação
com a fase preparatória, o quadro apresentava-se com particularidades impiedosas
nunca vistas. Refletiam-se através do olho duro a magnetizá-lo, dos gestos ameaçadores,
da voz rouca, a mastigar uma interrogação incompreensível.
“Sozinho, vi-o de
novo cruel e forte, soprando, espumando.
E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como
as aranhas que trabalhavam na telha negra.” (página 31)
Subalterno da voz
absurda admitia que era justo o que se fazia com ele. Na surra que tomou com o cinturão acontecera seu
primeiro contacto com a justiça, colocando-o na situação irremediável de réu considerado
como uma coisa reles, derrotado pela impotência. Na cela de sua passividade frequente
não tinha como se opor a toda essa miserável situação adversa.
De suas memórias
infantis mestre Graciliano Ramos com um estilo realista traz imagens e figuras que
marcaram os passos sem auroras. Nos movimentos de uma narrativa que não cedeu à
facilidade, pouco faz concessões à esperança, suas criaturas aparecem com a
marca de coisas desagradáveis. Chico
Brabo era perverso com o menino de dez anos, mas prestativo com os da rua. Era
o vizinho da direita. A casa onde morava o menino ficava perto da residência da
família Sabiá. Quando ele falava com o vozeirão, o bendito de D. Conceição
murchava, as conversas desapareciam, o cochicho dos moleques, o rumor do abano
na cozinha, o crepitar das labaredas que lambiam o angico no fogão. Era como se o homenzarrão tivesse atravessado
portas e paredes, com a cara balofa surgisse de repente junto dele, com os olhos
miúdos de porco se tornasse irreconhecível na sua assombração. Parecia um bicho
que apavorava, sem as gentilezas que o amaciavam na calçada e na rua.
Uma das recordações
mais desagradáveis que lhe ficaram das pessoas na infância estava em Fernando,
sujeito magro, de aspecto tenebroso, impertinente, nunca fora visto sorrindo.
Sua fisionomia viscosa, de coisa úmida, dava a sensação repugnante de uma lesma
vertebrada e muito ágil.
De suas memórias marcadas
pelo tom pessimista percebe-se de vez em quando que nem todas as pessoas eram
dotadas de mesquinharia e rabugice. Em algumas não funcionava o grotesco como
marca indelével do do caráter no difícil gesto do viver. D. Maria, a velha
professora, era dona de uma serenidade que se aproximava da santidade. De Mário
Venâncio via-se um literato que havia chegado à terra, alguns afirmavam que
estava nele um sujeito profundo. Tinha o rosto fino como focinho de rato, alguns
chegavam a dizer que era um sujeito dono de questões profundas, colaborador de
jornais com artigos e crônicas, autor de livros. Esse homem apontado como dono
de conhecimento sobre as questões que inquietam os humanos prenunciava para o
moço um bom futuro. Via na sua escrita iniciante sinais de um Coelho Neto, nas
descrições convincentes vestígios do naturalista Aloisio Azevedo. O vaticínio
era repelido, mas não escondia que o engrandecia e ao mesmo tempo alarmava com
a desconfiança. A vaidade esmoreceu depois quando examinou os escritos com
calma pensando que a vida toda amargaria o provável engano.
De todas as páginas
escritas com a mão de mestre, nessas memórias que evocam os primeiros
movimentos de um autor com a suas experiências negativas de vida, sobressaem
algumas que de tão verdadeiras fazem pensar que a vida é inviável quando se
move com a insensatez dos desarranjos, má vontade, conflito, soluço. Entre
aquelas que chegam impregnadas desse conteúdo pelo avesso, destacam-se como páginas
de análise arguta da natureza humana, resultantes de uma narrativa singular, concisa
e revoltante, por exemplo, “Um Incêndio”, “Um Enterro” e “Venta-Romba”.
Em “Um Incêndio”, o
menino vai com o amigo José conhecer um incêndio nas cabanas pobres com a
cobertura de folhas de Ouricuri. Tinha
conhecimento até aquele momento do fogo com suas pequenas labaredas quando se cozinhava
a comida no fogão a lenha ou nas fogueiras de São João. Fogo imenso com labaredas altas e fumaça
impelida para o céu como uma nuvem cinzenta, densa, nunca lhe ocorrera na
visão. Daí a decepção quando encontrou os tocos de uma cabana queimada pelo
fogo. Teve a atenção chamada pelo grupo de pessoas que se lamentavam em torno
de um resto de gente, um torrão sem
braços e pernas, a cabeça queimada, o rosto como uma careta feia na qual pelos
buracos dos olhos desciam uma gosma nojenta. Era de uma menina preta que havia
morrido queimada no incêndio. Havia duas
meninas pretas que estavam cozinhando a comida na cabana enquanto os pais
trabalhavam no eito. A centelha do fogo que saltara do fogão a lenha pegara nas
palhas da cobertura do barraco. Uma das negrinhas fugiu, a outra ficou tirando
de dentro da cabana as coisas que achava como importantes. Quando pensou que conseguira salvar todas as
coisas tidas como importantes, lembrou-se da litografia de Nossa Senhora. Ao tentar
sair do barraco em chamas com a litografia da santa encontrou a porta da
entrada bloqueada pelo fogo.
“Curvei-me num
arremesso de coragem. Faltava-lhe o cabelo, faltava a pele – e não havendo
seios nem sexo, perdiam-se os restos da
animalidade. A superfície vestia-se de crostas, como a dos metais inúteis,
carcomidos no abandono e na ferrugem. Em alguns pontos semelhava carne assada,
e havia realmente um cheiro forte de
carne assada; fora daí ressecava-se demais.” (Pág. 83)
Distinguiu uma cara, melhor dizendo, sobra
de cara, máscara pavorosa, e retornou para a sua casa com a imagem horrível
daquela visão, arrependido de ter aceito o convite para conhecer um incêndio.
Amaldiçoava o amigo, que o expusera à tamanha desgraça. Durante
o dia voltou a mencionar a visão com o restante de um corpo de gente, a
descrevê-la nos detalhes, enojado. Responsabilizou Nossa Senhora como autora
daquela agonia sórdida. Se a criatura
não tivesse a ideia de salvar a imagem, estaria
cortando palma de Ouricuri para fazer nova
cabana. As pessoas grandes refutaram o seu modo de julgar a situação inconveniente.
Nossa Senhora não era uma figura feroz e impiedosa. Podia ser pior. O fogo
poderia ter comido um dos prédios importantes do comércio local. Escolhera a
negrinha para que alçasse ao céu, sem precisar passar pelo fogo do
purgatório. Não lhe convenceu o
argumento com a benesse estranha ao drama. Não lhe pareceu que o fogo do purgatório
tivesse a ver com o do incêndio que matou a negrinha. E a negra, imunda e com
um defeito de cor, não estava no céu.
“Que ia fazer lá? Estragaria as delícias eternas, mancharia as asas dos anjos”. (pág. 86)
Nessas memórias infantis tomamos
conhecimento de vivências amargas que serviram ao escritor para construir na sua
ficção regional destinada ao leitor adulto uma atmosfera angustiante coberta de
sombras. O gosto pela literatura provavelmente herdara do avô paterno, de quem
tinha um retrato velho no álbum guardado no baú. A propósito, ele próprio admitia
ter recebido desse avô a vocação que se alimentava do ócio e das coisas que não
servem para nada. Em Buíque, na primeira
escola, provou os primeiros desconfortos dos livros didáticos do Barão de
Macaúbas. Mudou-se para Viçosa, depois passou para Maceió onde frequentou um
colégio de má fama, que lhe deu momentos da vida sem bons predicados. Retornou e, aos 18 anos, foi morar em Palmeira
dos Índios, no interior de Alagoas, onde se tornaria prefeito. Graças a dois
relatórios que escreveu se tornou conhecido. Os documentos, provenientes da
gestão municipal com a marca de sua escrita precisa, deram a entender que ali
havia um escritor promissor, inclinado para largas expressões, voos altos.
Já foi dito que a vida é sofrimento. Sofremos é porque estamos na vida. Toda boa literatura tem sofrimento. Graciliano Ramos escreveu uma obra magnífica como conhecimento da vida, haurida no Nordeste sem o verde, seco, desamparado, que confirmam essas observações. Faz lembrar por isso o que a literatura tem de catarse para libertar-nos das ruas ásperas, calcinadas, de paisagem sombria em que andamos. Neste sentido, o poeta William Blake adverte que nunca se deve deixar de sonhar porque só nos sonhos pode ser livre o homem.
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