Um Marujo na Folia
Cyro de Mattos
Os amigos resolveram organizar um bloco para brincar pela primeira vez o Carnaval
nas matinês do Clube Social e Recreativo de Itabuna. A fantasia era simples,
toda branca. Sapato preto, meias de cano longo, calça curta de brim, camisa de
algodão, a manga curta, colar colorido de papel crepom ao redor do pescoço e
boné de marinheiro. O bloco ia se chamar
“Os Marujos na Folia”. Beto, que era o mais velho de todos, falou que o bloco
teria onze componentes, como num time de futebol, adiantando logo que eu não
podia ficar de fora, já que participava de todas as aventuras e brincadeiras
dos meninos lá da Rua do Quartel Velho.
O menino só podia brincar o Carnaval nas duas matinês que o clube social
oferecia, no domingo e terça-feira, se o pai fosse um dos integrantes do quadro
dos associados. Beto sabia que meu pai não era associado do clube, mas me
prometeu que ia pedir ao pai dele que falasse com o meu para contornar o
problema. Soube depois que meu pai se negou a se tornar sócio do clube.
A recusa de meu pai deixou-me triste e preocupado. Ficava sem sair no
bloco “Os Marujos na Folia”, e, por isso mesmo, não ia brincar com os amigos o
Carnaval nas duas matinês que o clube oferecia todos os anos. E uma das coisas
que qualquer menino mais desejava era brincar o carnaval nas matinês do único
clube social da cidade. Ali estava a grande oportunidade para conquistar uma
namorada. Mesmo que o namoro durasse
apenas aquelas duas animadas tardes de carnaval no salão do clube. Consistisse
em pegar na mão da menina, de vez em quando passar o braço no ombro dela,
trocar olhares ingênuos e sair cantando com a eleita, dando voltas e voltas
pelo salão.
Nas matinês animadas, os foliões mirins jogavam serpentina para o alto,
confete e lança-perfume uns nos outros. Cantavam as marchas ou sambas que eram
tocados pela orquestra “Bambas da Alegria”.
Minha mãe pediu ao pai, insistentemente, que se tornasse sócio do clube.
Adiantou-lhe que a fantasia ela mesmo fazia para o filho. Ele ficou
irredutível, alegando que quando fosse pagar a mensalidade do clube podia não
ter o dinheiro, ia passar vergonha. Não queria também sacrificar coisas mais
importantes que a vida exigia para comprar, como comida, roupa, remédio e
escola do filho, em razão de ter de saldar esse tipo de compromisso em todo mês
com o clube.
- Eu é que sei o quanto me custa arranjar dinheiro para sustentar a
família – dizia meu pai com o rosto sério. – Não quero falar mais sobre esse
assunto – concluía, sem querer saber dos argumentos que a mãe alegava para
fazer com que ele mudasse de atitude e desse aquele prazer ao filho – o de
brincar pela primeira vez o Carnaval no clube com os amigos.
Quando parecia que tudo estava perdido, chegou-me não sei de onde aquela
ideia como que acesa por uma pequena luz, que de repente passava a iluminar o
caminho para que eu fosse brincar o carnaval no clube. Lembrei-me do porão da
casa abandonada, vizinha do prédio do clube social. Era ali que fazia meu
esconderijo quando brincava de mocinho e bandido com a turma. Havia no
esconderijo aquele quadrado vazio na parede lateral, deixado provavelmente com
a retirada duma janela carcomida pelos cupins. Sabia que por ali qualquer
pessoa podia passar e, em poucos minutos, estava na quadra
de basquete do clube. Tinha feito isso várias vezes, deixando os amigos a ver
navios, quando eu era o mocinho perseguido por um bando de bandidos perigosos.
Falei com Beto sobre meu plano. Dez minutos
antes de começar o baile, a turma do bloco “Os Marujos na Folia” devia estar na
quadra de basquete do clube. Ficaria ali em frente ao buraco grande na parede
lateral do porão da casa abandonada, como se estivesse tapando-o. Formaria um
tapume humano, protegendo-me quando eu passasse pelo buraco e adentrasse
naquela parte do clube. O plano era simples e seguro. Tinha tudo para dar
certo.
Disse no outro dia à minha mãe que fizesse
minha fantasia de marujo, tinha resolvido ir ver o Carnaval de rua com as
caretas, os blocos, as batucadas e os afoxés de caboclo. Era melhor do que ficar em casa zangado porque
não estava com os amigos lá no clube, caindo na folia. Ela fez a fantasia no
mesmo dia em que lhe dei aquela notícia na segunda semana de fevereiro. Estava
satisfeita, o dia inteiro dera vida à máquina de costura com as mãos e pernas
ativas, enquanto fazia a minha fantasia. Cantava alegre, sabendo que o filho
caçula não ia chorar nem tampouco ficar triste porque não ia brincar o Carnaval no clube com os amigos,
fantasiado de marujo.
Ela sorriu quando soube pela mãe de Beto, na
Quarta-Feira de Cinzas, como foi que eu tinha entrado no clube para brincar o
Carnaval no bloco “Os Marujos na Folia”. Ficou sabendo ainda que o filho tinha
sido o único dos meninos do bloco que namorou Glorinha, a filha de doutor
Barreto, o médico que era diretor do Hospital da Santa Casa de Misericórdia.
Ela era a menina mais bonita da cidade, a mais cobiçada pelos meninos filhos
das famílias ricas, revelou a mãe de Beto.
No namoro com a Glorinha, dava várias voltas de
mãos dadas com a eleita pelo salão, cantando a todo pulmão, entre outras
marchas, “Linda Lourinha”, “As Pastorinhas“, “Pirata da Perna de Pau”, “Chiquita Bacana”, “Jardineira” e a do gafanhoto,
que era a minha preferida.
Gafanhoto
deu na
minha roça,
comeu,
comeu
toda minha plantação,
xô
gafanhoto, xô, xô,
deixa um
pé de agrião
para o meu pulmão,
gafanhoto, isso não se faz,
deixa
minha roça em paz...
(Do livro Nada Era Melhor, infância romanceada)
* * *
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