A História na Travessia de Gerações
Cyro
de Mattos
A
história caminha e avança na sua travessia através de gerações. Conceito
importante da História, pode ser considerado como o ponto em torno do qual executa seus movimentos e manifestações. Tal
geração afirmar-se-á se conseguir formar uma corrente, movimento ou
tendência de pensamento marcante no
progresso social, nos costumes civilizacionais, nas políticas culturais ou na
educação literária dos indivíduos. O grau de combatividade de uma geração está
naturalmente na dependência do estado atual das coisas com relação ao momento em que se afirma o
desejo coletivo de mudança.
Seja qual for
a importância que se atribua ao tema e ao conceito preconizado, a noção de
geração pode levar a pressupor, de modo equivocado, que as gerações se sucedem de forma
horizontal no curso da história. Na verdade pertencem à mesma geração, como é
comum, indivíduos nascidos próximos e
dotados de afinidades culturais. Pode ocorrer que indivíduos pertençam a várias
gerações numa mesma época. Ou acontecer discrepância de idade e nem por isso deixam de situar-se na mesma geração, como no caso de Machado de
Assis, nascido em 1839, e Aluizio
Azevedo, em 1857.
Quando um
homem nasce, se vê numa circunstância concreta, em que tem de viver e que é
social em uma de suas dimensões, por consequência histórica. Nos passos de Ortega e Gasset, o
filósofo Julián Marias admite que a geração não é um conceito biológico e sim
histórico porque decisivo não é a idade
biológica que cada homem tem, mas, sim,
sua inserção numa determinada dimensão de mundo. Não se desprezando o
fator biológico, releva-se a importância do ser histórico
correspondendo ao seu lugar e à sua época. Geração seria um conjunto de indivíduos pertencente a vários grupos de idade ou não,
portadores de conteúdo determinado e cujas atividades, anseios, tendências, perspectivas e alcances norteiam-se no sentido de uma
afirmação, que é a sua afirmação
geracional.
Conforme
Julián Marias:
Adiante,
ele acrescenta:
“A história
permite ao homem transmigrar hermeneuticamente de sua circunstância para
outras, e dessa maneira as fazer suas; só com a história toma inteiramente posse
de si mesmo e sai da estreiteza de sua circunstancialidade e das interpretações
tradicionais recebidas, para alcançar a própria realidade, além de todas as
interpretações. Só com a razão histórica – com a razão que é a própria história
– pode o homem dar a razão de si mesmo e projetar livremente sua vida pessoal,
a partir de sua realidade originária e irredutível. A história, o órganon da
autenticidade. (Introdução à filosofia, p. 342).
A geração seria assim
a unidade concreta da cronologia histórica autêntica.
Pelo exposto, a realização da vida nos remete a duas
faixas de questões: o horizonte
histórico de nosso viver e o fundo pessoal de nós mesmos, configurado pelo fato
da vocação. É a travessia com a nossa vocação, idêntica aos que pertencem ao
grupo de indivíduos, que incide em nossa afirmação e faz da vida humana
individual um acréscimo importantíssimo em nosso destino de seres gregários,
entre o pensamento e o sentimento, atributos que são pertencentes a nós
mesmos.
Na travessia
de gerações baianas não se pode deixar de ser considerada a Geração Revista da
Bahia. Sucedeu à fulgurante geração de Glauber Rocha, o fundador do Cinema
Novo. A órbita de atuação da Geração Revista da Bahia foi a literatura e outros
campos do conhecimento humano, como o cinema e as artes plásticas.
Com a dispersão da talentosa geração de Glauber Rocha, em
1964, outras gerações iriam despontar nos meios culturais de Salvador. A
chamada Geração Revista da Bahia acontece nessa épocados de 1960. Seus jovens
integrantes já demonstravam ser possuidores de certo instrumental crítico para
a discussão dos temas literários e culturais.
Este articulista fez parte da Geração Revista da Bahia, ao
lado de Alberto Silva, Marcos
Santarrita, Ildásio Tavares, Ricardo Cruz, Adelmo Oliveira, Oleone Coelho
Fontes, Fernando Batinga, Fernando Kraychete, o desenhista Nacif Ganem e o
artista plástico Francisco Liberato, entre outros. Todos nós, iniciantes no
fazer literário e na divulgação da cultura,
liderados pelo crítico e poeta Carlos Falck, o guru espiritual do grupo, pretendíamos deixar nossa impressão digital no contexto literário e cultural da época. Alguns,
como Ildasio Tavares e Marcos Santarrita, romperam tempos depois as fronteiras
estaduais porque de fato elaboraram uma
obra significativa no corpo do Brasil
literário.
Geração
Revista da Bahia. Levava esse nome porque o corpo redacional da Revista da Bahia, órgão cultural da Imprensa
Oficial, era formado pelos jornalistas Alberto Silva e Marcos Santarrita. A
revista emprestava seu nome para denominar uma geração de promissores
escritores e protagonistas culturais. Recebia em suas páginas colaborações
desses novíssimos intelectuais,
contistas, poetas, ensaístas e desenhistas,
que tinham nos ombros o peso de susbstituir a inquietante geração de Glauber Rocha, a qual
havia sido dispersa pelo regime
militar de 64. Era tarefa
difícílima a de uma geração constituída
de jovens intelectuais substituir com o mesmo brilho aquela outra liderada pelo
criador do Cinema Novo, que deixou pontos elevados na progressão da vida
cultural de Salvador de Bahia.
Sempre com o apoio dos dois diretores da Imprensa Oficial,
Germano Machado e José Curvelo, a Revista da Bahia foi para os artistas da
geração 60, segundo Juarez Paraíso, responsável pela direção artística, o que
significou os cinco números da revista Cadernos da Bahia, 1948, 1952, para os
primeiros modernistas. Com Juarez Paraíso, a revista passou a ter um
planejamento gráfico mais solto e moderno. Os números que foram lançados sob a
sua responsabilidade artística foram enriquecidos com reproduções e ilustrações
dos artistas Antônio Rebouças, Jamison Pedra, Hansen Bahia, Ângelo Roberto,
Edsoleda Santos, Nacif Ganem, Manoel Araújo, Leonardo Alencar, Henrique Oswald,
Riolan Coutinho, Edízio Coelho, Betty King, Francisco Liberato, Calazans Neto,
Juarez Paraíso, José Maria, Sílvio Robatto, Genaro de Carvalho, Carlos Bastos,
Raimundo Oliveira e outros.
Considerando a idade biológica e afinidades culturais, o elenco de intelectuais que formava a Geração Revista da Bahia pode ser ampliado com os nomes de Luís Carbogini Quaglia, louvado contista do mar, Maria da Conceição Paranhos, poeta e ensaísta, Fernando Ramos e Guido Guerra, promissores romancistas, José de Oliveira Falcón, o poeta de Canudos, os cineastas Orlando Sena e Olney São Paulo e o poeta Capinan.
Na visão do ensaísta Cid Seixas, o mais importante lançamento de poesia na Bahia, no período compreendido entre 1964 e 1974, aconteceu com o livro ABC-reobtido, de Maria da Conceição Paranhos. O discurso da jovem poeta, com bases em pesquisa e atualização estética, rejeitava os limites de certa retórica ornamental. Outro jovem intelectual baiano que desponta nas letras daquele período é Guido Guerra. Escritor de formação jornalística, ele trazia para a sua prosa de ficção os atritos e rupturas do homem cotidiano.
A geração
Revista da Bahia enfraqueceu com a ida de Alberto Silva, moderno crítico de
cinema e jornalista de um texto
primoroso, para o Rio de Janeiro, em 1967, e logo a seguir a de Marcos
Santarrita. Junta-se a isso o falecimento de Carlos Falk. Fui para Itabuna onde exerceria a advocacia
durante muitos anos. Permaneceram em
Salvador aquelas outras jovens vozes vocacionadas para fazer da vida um consistente projeto
literário e cultural.
Os
sobreviventes da Geração Revista da Bahia dispersos, sem contar com a força aglutinadora de Carlos
Falck, presenças importantes de Alberto Silva e Marcos Santarrita, já não tinham a mesma motivação para se
encontrar na Biblioteca Pública,
localizada na Praça Tomé de Sousa, nos
botecos e bares da Rua da Ajuda, durante noites de sábado, na livraria
Civilização Brasileira, na rua Chile, em final de tarde, por onde toda a cidade passava na
semana.
Quando então
se discutia as questões de literatura atual, muitas vezes com veemência, em torno de Kafka, Sartre, Brecht, Pessoa,
Proust, Joyce e Faulkner. Guimarães
Rosa, Clarice Lispector e Adonias Filho. Drummond, Jorge de Lima e Cecília
Meireles. Era questionada a problemática social do indivíduo através do pensamento
de Ortega y Gasset, Marx e Lukacs. A geopolítica do Brasil através dos estudos
de Josué de Castro, a formação da família patriarcal brasileira com Gilberto
Freire ou a evolução política do Brasil sob o método dialético marxista de Caio
Prado Junior.
Cyro de Mattos é ficcionista e poeta, publicado em Portugal,
Itália, França, Alemanha, Espanha, Dinamarca e Estados Unidos. Premiado no
Brasil, Portugal, Itália e México. Membro das Academias de Letra da Bahia, de
Ilhéus e de Itabuna. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de
Santa Cruz.
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