Os olhos de ontem
Sempre tive uma boa
memória. Quando falha fico preocupado. Pois não é que esta semana ela me fez
uma que quase me leva ao pânico? Felizmente para lembrar tive a ajuda de Tereza
Cruvinel, brilhante jornalista a quem nos ligam laços de afeição desde que ela
chegou a Brasília.
Era o dia 15 destes
idos de março. Eu curtindo uma dor lombar destas que nos levam a só pensar em
analgésico. O telefone toca. Atendo. Era Tereza, com toda a sua delicadeza a
parabenizar-me: - 'Sarney, depois de outros que tivemos, só ouço falar bem do
seu governo. Paz e tranquilidade, crescemos cinco por cento ao ano e nosso
salário aumentava todo mês com a maldita da correção monetária. Você trouxe a
democracia de volta para nosso País, a transição democrática, a Constituição de
88 - a que mais durou no Brasil sem rupturas?'
Eu respondi: -
'Obrigado, minha querida amiga, mas por que está relembrando coisas passadas?'
- 'Sarney, hoje é
quinze de março, faz 38 anos do seu governo?'
Eu nem me lembrava
mais e a data ia passando em branco na minha famosa memória. Quase caí de
costas.
Passei um raio-X
sobre o passado. Logo apareceu a frase que se tornou ensinamento: 'O poder é
solitário'. Eu acho que há um exagero, porque o poder não permite solidão. É
dia e noite de trabalho, todos carregados de preocupações, avaliações de
políticas públicas e perda de amigos. É um terreno movediço de intrigas, uma disputa
pessoal a cada metro quadrado, é terreno de ocultas batalhas, das quais o
Presidente é o último a desconfiar e saber. E nele há um monstro invisível,
escondido na claridade, onipresente em todo espaço: a traição. Lidar com tudo
isso é o inferno que permeia o poder, onde transitam os devotos do mandar, dos
autoritários e da força. (Não é minha praia).
Quando assumi a
Presidência estávamos no mundo do desconhecido e o destino colocava à minha
frente o desafio que estava guardado para mim. O General Leônidas fora
encarregado de comunicar-me o resultado da dramática noite da cirurgia de
Tancredo Neves. Minha resposta foi a mesma que lhe tinha dado antes: - 'Quero
assumir junto com o Tancredo que estará restabelecido na próxima semana.' Ele
retrucou: - 'Sarney, não crie dificuldades. Foi difícil chegar até aqui. Você
assumirá às dez horas da manhã. Boa noite, Presidente!'
Não dormi o resto
da noite. Ao dar posse aos ministros comecei dizendo: - 'Estou com os olhos de
ontem!' Preso a uma emoção que tinha tudo da visão de uma responsabilidade
imensa.
Fazendo uma síntese
do governo, tenho o orgulho da oportunidade que o povo me deu de ajudar o meu
País, o Continente da América do Sul e o povo brasileiro. Não vou contar
espigas de milho, mas o que é fundamental e fica na História.
Para o mundo, eu e
Alfonsín, grande estadista e amigo do Brasil, acabamos com a corrida nuclear
Brasil e Argentina e fizemos que o nosso Continente fosse o único no mundo
livre de armas nucleares. Isso é um exemplo que até hoje não foi seguido. Por
proposta minha o Atlântico Sul entre América e África foi declarado Zona de Paz
pela ONU. Acabamos com os conflitos regionais na América do Sul. Lançamos as
bases do Mercosul.
Para o Brasil, a
Democracia, a nova Constituição, o 'Tudo pelo social': seguro-desemprego,
programas contra a fome - o do leite, considerado pela Unesco como o melhor
programa mundial de combate à fome infantil -; vale-transporte e
vale-alimentação; farmácia básica; universalização da saúde com o SUD,
transformado em SUS pela Constituinte. Tivemos um crescimento de 99% do PIB.
Criei o Ministério da Cultura e a Lei de Incentivo à Cultura; o da Reforma
Agrária; o da Irrigação; o da Ciência e Tecnologia - demos mais bolsas de
ensino superior do que já tinha sido dado até então -; o Programa Nossa
Natureza e o IBAMA. Demarcamos 32 milhões de hectares de terras indígenas.
Atingimos, pela primeira vez, o sétimo lugar entre as economias mundiais. Criei
a Secretaria do Tesouro, o Siafi, extingui a Conta-Movimento do Banco do Brasil
e unifiquei os orçamentos da União.
As Forças Armadas
voltaram aos quartéis, com o programa de modernização comandado pelo melhor
Ministro do Exército que já tivemos, Leônidas Pires Gonçalves, um dos grandes
chefes militares do País. Não tivemos nenhuma crise militar.
Fizemos, sobretudo,
a transição para democracia.
Obrigado, Tereza
Cruvinel, pela lembrança.
Os Divergentes,
21/03/2023
https://www.academia.org.br/artigos/os-olhos-de-ontem
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José Sarney - Sexto ocupante da Cadeira nº 38 da ABL, eleito
em 17 de julho de 1980, na sucessão de José Américo de Almeida e recebido em 6
de novembro de 1980 pelo Acadêmico Josué Montello. Recebeu os Acadêmicos Marcos
Vinicios Vilaça e Affonso Arinos de Mello Franco.
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