Erudição e Sabedoria em Rui Barbosa
Cyro de Mattos *
Rui Barbosa
nasceu em Salvador, aos 5 de novembro de 1849. Filho de Maria Adélia, moça de
temperamento calmo e bem educada. Seu pai, João Barbosa, fora um político
atuante, jornalista inflamado, homem preocupado com as reformas humanas no
ensino, um médico que abandonara a profissão.
Rui foi membro da Academia de Letras da
Bahia e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, tendo sido presidente
quando Machado de Assis faleceu. Era um homem de estatura baixa, franzino, a
cabeça grande sustentada por um pescoço fino. Tímido e feio, mas tinha uma voz
poderosa quando ocupava a tribuna. Os olhos faiscavam, de cada centelha a
oratória incendiava com a argumentação fascinante, baseada na verdade.
Fora
incapaz de conceber a vida sem um ideal. Liberal convicto, construtor da
República, deu-lhe o arcabouço jurídico inicial. Não aceitava a escravidão,
clamava pela adoção das eleições diretas, reforma do ensino com métodos
humanos, investia contra o poder papal, como defensor ferrenho da ideia de
separação entre o Estado e a Igreja.
A erudição
adquirida ao longo do tempo era aplicada com brilho nas relações sociais, no
intuito de construir a vida, só querendo fazer o bem. Gostava de repetir o
versículo, “todo o bem que fizeres, receberás do Senhor.” No elogio a José
Bonifácio, falecido no fim de 1886, desabafou contra aquele mundo político, que
o fizera sofrer várias derrotas e que era considerado por ele como meio louco e
míope, espécie de divindade gaga, protetora do daltonismo e da surdez, uma
combinação da esterilidade das estepes com a paisagem onde não se canta,
supondo-se que assim fosse inimiga da harmonia, contradição do belo, como tem
sido neste país. E, numa intencional advertência ao poder monárquico, reafirmou
como encarava a questão da escravatura na célebre frase, primeiro a abolição,
nada sem a abolição, tudo pela abolição.
Amara de
verdade duas profissões: o jornalismo e a advocacia. O jornalismo sempre foi a
janela de sua alma, por onde se acostumou a conversar durante todo o tempo,
todas as manhãs, para a rua com os seus compatriotas, como informa Luís Viana,
seu melhor e mais completo biógrafo, em A Vida de Rui Barbosa. Advogado do
povo, foi o patrono dos professores demitidos de suas funções na Escola
Politécnica. Quando o Congresso decretou a anistia, julgando impossíveis de
revisão as penas e os processos dos aparentemente beneficiados, ele bate às
portas dos tribunais para se opor à situação que feria a lei e maltratava a
justiça.
Ao se
dedicar à política, fora eleito Deputado Provincial em 1878 e no período de
1879-1884 exerceu mandato na Câmara dos Deputados do Império. Com o advento da
República, nomeado Ministro da Fazenda, a política financeira que adotou
caracterizou-se pelo abandono do lastro-ouro e a adoção de grandes emissões
garantidas por apólices do Governo, visando fomentar o comércio, além da
criação do Tribunal de Contas e delegacias fiscais.
O
conferencista falava mais de três horas, sem que houvesse um murmúrio desaprovador
do auditório repleto de pessoas. Quando terminava, no meio das palmas demoradas
ouvia-se: “Continue! Continue!” Pessoas riam, choravam, deliravam,
indignavam-se, aplaudiam, acompanhavam o orador hipnotizadas pelas emoções que
a sua alma a todos transmitia.
Designado
pelo Senado para examinar o projeto do Código Civil, já revisto pelo filólogo
baiano Carneiro Ribeiro, essa tarefa sem natureza política revelaria ao Brasil
um gramático conhecedor amiúde e melhor na colocação dos pronomes. Em pouco
tempo, o seu parecer apresentou mais de mil emendas ao texto revisto por
Carneiro Ribeiro, o antigo mestre do Ginásio Baiano, sendo corrigido agora pelo
ex-aluno nas regras gramaticais.
Em Haia, o assunto mais importante da
Conferência era a organização do Tribunal Permanente de Arbitragem, com o palco
previamente armado para o papel de destaque das potências que governavam o
mundo e mandavam nos povos.
A voz impetuosa e indignada de Rui apresenta
sua proposta para a Organização do Tribunal, onde todos os países terão
assento. Fica ao livre arbítrio dos contendores submeterem as suas questões ao
plenário do Tribunal. Falou em francês castiço, entre o silêncio geral, perante
um auditório que o desconsiderava, mas que ficara espantado. No final fora
reconhecido como uma das mais poderosas vozes da assembleia. Aquele homem
pequeno, de voz ritmada na verdade e no direito, derrotara os que representavam
os direitos e interesses das grandes potências, Alemanha, Estados Unidos,
Inglaterra, França, Rússia e Itália. Por seu desempenho superior ficou
conhecido como a Águia de Haia.
O discurso
de Rui surpreende pela variedade e nas expressões soberbas de suas leituras.
Da palavra imantada nas imagens candentes emergem verdades que iluminam a vida,
mas sua erudição não é apenas variada, de vocabulário ilimitado, domínio do
idioma, citações e argumentos que impressionavam vivamente. Pode-se dizer
desse paladino da liberdade que fora um erudito abraçado com um sábio.
Rui
Barbosa, o que conhecia Vieira, lia Castilho, recitava Camões aos dez anos,
santo Deus, o erudito e o sábio. Deixou este velho mundo em 1 de março de 1923.
Fora residir na morada do eterno.
Referência
A Vida de Rui Barbosa, Luís Viana Filho, Lelo & Irmãos,
Porto, Portugal, 1981.
*Cyro de Mattos é membro efetivo da Academia de Letras da
Bahia. Ocupa a cadeira 22 fundada por Rui Barbosa.
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