A Polêmica
O Romualdo tinha perdido, havia já
dois ou três meses, o seu lugar de redator numa folha diária; estava sem ganhar
vintém, vivendo sabe Deus com que dificuldades, a maldizer o instante em que,
levado por uma quimera da juventude, se lembrava de abraçar uma carreira tão
incerta e precária como a do jornalismo.
Felizmente era solteiro, e o dono
da “pensão” onde ele morava fornecia-lhe casa e comida a crédito, em atenção
aos belos tempos em que nele tivera o mais pontual dos locatários.
Cansado de oferecer em pura perda
os seus serviços literários a quanto jornal havia então no Rio de Janeiro, o
Romualdo lembrou-se, um dia, de procurar ocupação no comércio, abandonando para
sempre as suas veleidades de escritor público, os seus desejos de consideração e renome.
Para isso, foi ter com um
negociante rico, por nome Caldas, que tinha sido seu condiscípulo no colégio Vitório,
a quem jamais ocupara, embora ele o tratasse com muita amizade e o tuteasse, quando
raras vezes se encontrava na rua.
O negociante ouviu-o, e disse-lhe:
- Tratarei mais tarde de arranjar
um emprego que te sirva; por enquanto preciso da tua pena. Sim, da tua pena. Apareceste
ao pintar! Foste a sopa que me caiu no mel! Quando entraste por aquela porta,
estava eu a matutar, sem saber a quem me dirigisse para prestar-me o serviço
que vou te pedir. Confesso que não me tinha lembrado de ti... perdoa...
- Estou às tuas ordens.
- Preciso publicar amanhã, impreterivelmente,
no “Jornal do Comércio”, um artigo contra o Saraiva.
- Que Saraiva?
- O da rua Direita.
- O João Fernandes Saraiva?
- Esse mesmo.
- E queres tu que seja eu quem
escreva esse artigo?
- Sim. Ganharás uns cobres que não
te farão mal algum.
A essa palavra “cobres”, o Romualdo
teve uma estremeção de alegria; mas caiu em si:
- Desculpa, Caldas; bem sabes que o
Saraiva é, como tu, meu amigo... como tu, foi meu companheiro de colégio...
- Quando conheceres a questão que vai
ser o assunto desse artivo, não te recusarás a escrevê-lo, porque não admito
que sejas mais amigo dele do que meu. Demais, nota uma coisa: não quero
insultá-lo, não quero dizer nada que o fira na sua honra, quero tratá-lo com
luva de pelica. Sou eu o primeiro a lastimar que uma questão de dinheiro destruísse
a nossa velha amizade. Escreves o artigo?
- Mas...
- Não há mas nem meio mas! O
Saraiva nunca saberá que foi escrito por ti.
- Tenho escrúpulos...
- Deixa lá teus escrúpulos, e ouve
de que se trata. Presta-me toda atenção.
E o Caldas expôs longamente ao
Romualdo a queixa que tinha do Saraiva. Tratava-se de uma pequena questão
comercial, de um capricho tolo que só poderia irritar um contra o outro, dois
amigos que não conhecessem o que a vida
tem de áspero e difícil. O artigo seria um desabafo menos do brio que da
vaidade, e, escrevendo-o, qualquer pena hábil poderia, efetivamente, evitar uma
injúria grave.
O Romualdo, que há muito tempo não
pegava numa nota de cinco mil réis, e apanhara, na véspera, uma descompostura
da lavadeira, cedeu, afinal, às tentadoras instâncias do amigo, e no próprio
escritório deste redigiu o artigo, que satisfez plenamente.
- Muito bem! – exclamou o Caldas,
depois de três leituras consecutivas.
- Se eu soubesse escrever,
escreveria isto mesmo! Apanhaste perfeitamente
a questão!
E, depois de um passeio à burra,
meteu um envelope na mão de Romualdo, dizendo-lhe:
- Aparece-me daqui a dias: vou
procurar o emprego que desejas. A época é difícil, mas há de se arranjar.
O Romualdo saiu, e, ao dobrar a
primeira esquina, abriu sofregamente o envelope: havia dentro uma nota de cem
mil réis. Exultou! Parecia-lhe ter tirado a sorte grande!
Na manhã seguinte, o ex-jornalista
pediu ao dono da “pensão” que lhe emprestasse
o “Jornal do Comércio”, e viu a sua prosa “Eu e o sr. João Fernandes
Saraiva” assinado pelo Caldas; sentiu alguma coisa que se assemelhava ao
remorso, o mal-estar que acomete o espirito e se reflete no corpo do homem
todas as vezes que este pratica um ato inconfessável, e aquilo era uma quase traição.
Entretanto almoçou com apetite.
À sobremesa entrou na sala de
jantar um menino, que lhe trazia uma carta em cujo sobrescrito se lia a palavra
“urgente”.
Ele abriu e leu:
“Romualdo. – Preciso falar-lhe com a
maior urgência. Peço-lhe que dê um pulo ao nosso escritório hoje mesmo, logo
que possa. Recado do – João Fernandes Saraiva”.
Este bilhete inquietou o ex-jornalista.
Com certeza, pensou ele, o Saraiva
soube que fui eu o autor do artigo! Naturalmente alguém me viu entrar em casa
do Caldas, demorar-me no escritório... desconfiou da coisa e foi dizer-lhe...
Mas para que me chamará ele?
O seu desejo era não acudir ao
chamado; alegar que estava doente, ou não alegar coisa alguma, e lá não ir; mas
o menino de pé, junto à mesa do almoço, esperava a resposta... Era impossível
fugir!
- Diga ao seu patrão que daqui a
pouco lá estarei.
O menino foi-se.
O Romualdo acabou a sobremesa, tomou o café,
saiu, e dirigiu-se ao escritório do Saraiva, receoso de que este o recebesse
com duas pedras na mão.
Foi o contrário. O amigo recebeu-o
de braços abertos, dizendo-lhe:
- Obrigado por ter vindo! Estava com medo
de que o pequeno não te encontrasse! Vem cá!
E levou-o para um compartimento reservado.
- Leste o “Jornal do Comércio” de
hoje?
- Não – mentiu prontamente o
Romualdo – Raramente leio o “Jornal do Comércio”.
- Aqui o tens; vê que descompostura
me passou o Caldas!
O Romualdo fingiu que leu.
- Isso que aí está é uma
borracheira, mas não é escrito por ele! – bradou o Saraiva. – Aquilo é um besta
que não sabe pegar na pena senão para assinar o nome!
- O artigo não está mau... Tem até
estilo...
- Preciso responder!
- Eu, no teu caso, não respondia...
- Assim não penso. Preciso responder
amanhã mesmo no próprio “Jornal do Comércio” e, se te chamei, foi para pedir-te
que escrevas a resposta.
- Eu?...
- Tu, sim! Eu podia escrever,
mas... que queres?... Estou fora de mim!...
- Bem sabes – gaguejou Romualdo –
que sou amigo do Caldas. Não me fica bem...
- Não te fica bem, por quê? Ele com
certeza não é mais teu amigo que eu! Depois, não é intenção minha injuriá-lo;
quero apenas dar-lhe o troco!
No íntimo o Romualdo estava
satisfeito, por ver naquele segundo artigo um meio de atenuar, ou, se quiserem,
de equilibrar o seu remorso.
Ainda mastigou umas escusas, mas o outro insistiu:
- Por amor de Deus não te recuses a
este obséquio tão natural num homem que vive da pena! Tu estás desempregado,
precisas ganhar alguma coisa...
O Romualdo cedeu a este último argumento, e, depois de convenientemente
instruído pelo Saraiva sobre a resposta que devia dar, pegou na pena e escreveu
ali mesmo o artigo.
Reproduziu-se então a cena da
véspera, com mudança apenas de um personagem. O Saraiva, depois de ler e reler
o artigo, exclamou: - Bravo! Não poderia sair melhor! – e, tirando da algibeira
um maço de dinheiro, escolheu uma nota de duzentos mil réis e entregou-o ao
prosador.
- Oh! Isso é muito, Saraiva!
- Qual muito! Estás a tocar leques
por bandurra: é justo que te pague bem!
- Obrigado: mas olha... recomendo-te
que mandes copiar o artigo, porque no “Jornal” pode haver alguém que conheça a
minha letra.
- Copiá-lo-ei eu mesmo.
- Adeus.
- Adeus. Se o Caldas treplicar,
aparece-me!
- Está dito.
No dia seguinte, o Caldas entrou
muito cedo no quarto do Romualdo, com o “Jornal do Comércio” na mão.
- O bruto replicou! Vais escrever-me
a tréplica!
E batendo com as costas da mão no
jornal:
- Isso não é dele... Aquilo é
incapaz de traçar duas linhas sem quatro asneiras... mas, ainda assim, quem
escreveu por ele está longe de ter o teu estilo, a tua graça... Anda!
Escreve!...
E o Romualdo escreveu...
Durante um mês teve ele a
habilidade de alimentar a polêmica, provocando a réplica, para que não
estancasse tão cedo a fonte de receita que encontrara. Para isso fazia
insinuações vagas, mas pérfidas, e depois, em conversa ora com um, ora com outro,
era o primeiro a aconselhar a retaliação e o esforço.
Tanto o Caldas como o Saraiva se
mostraram cada vez mais generosos, e o Romualdo nunca em dias de sua vida se
viu com tanto dinheiro. Ambos os contendores lhe diziam: - Escreve! Escreve! Eu
quero ser o último!
Por fim, vendo que a questão se
eternizava, e de um momento para o outro a sua duplicidade podia ser
descoberta, o Romualdo foi gradualmente adoçando o tom dos artigos, fazendo,
por sua própria conta, concessões recíprocas, lembrando a velha amizade, e com
tanto engenho se houve, que os dois contendores se reconciliaram, acabando
amigos e arrependidos de terem dito um ao outro coisas desagradáveis em letra
de forma.
E o público admirou essa polêmica,
em que dois homens discutiam com estilos tão semelhantes que o próprio estilo
pareceu humanizá-los.
O Caldas cumpriu a sua promessa: o
Romualdo pouco depois entrou para o comércio, onde ainda hoje se acha,
completamente esquecido do tempo que perdeu no jornalismo.
----------------
Artur
Azevedo (Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo), jornalista e teatrólogo,
nasceu em São Luís, MA, em 7 de julho de 1855, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ,
em 22 de outubro de 1908. Figurou, ao lado do irmão Aluísio Azevedo, no grupo
fundador da Academia Brasileira de Letras, onde criou a cadeira nº 29, que tem
como patrono Martins Pena.
Nenhum comentário:
Postar um comentário