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quinta-feira, 19 de maio de 2022

FESTA DO NEGRO - Cyro de Mattos



Festa do Negro

Cyro de Mattos

 

Sua coreografia,

seu colorido,

suas danças,

vento ameno

nas bandeirolas

os olhos enchem.

 

Toques, gestos,

roupas, prosas,

insígnias, colares.

Ares cheirosos,

embriagadores.

Temperos requintados,

picantes sabores.

 

Cânticos do transe,

adarrum, adufá,

na descida orixás.

Rum, rumpi, lê,

regidos por alabê.

 

No Axé Opô Afonjá

é que então percebi

quanta beleza

 África irradia

quando desce na Bahia.

 

Numa roda canta, 

numa roda cavalga,

numa Casa santa

que o mal espanta.


 

(Do livro Poemas de Terreiro e Orixás, Mazza Edições, BH, 2019)


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Modo Encantatório de Pensar o Negro

                                  

                                    Muniz Sodré *

 

      O saudoso Agenor Miranda Rocha, um dos maiores oluôs (adivinho, sacerdote oracular) da tradição ketu-nagô no Brasil, era também um refinado sonetista. Conhecendo-o de perto, indaguei-lhe um dia por que jamais compusera um verso sequer sobre as coisas do culto. Disse-me que  a linguagem simplesmente não o mobilizava nessa direção. Sua temática constante era o amor –– à divindade, à fraternidade, à natureza, às pessoas. Mas ele escrevia com a força de fala de um grande portador do axé que, como se diz no candomblé, é “a luz do dia”.

    Noutros poetas, li tentativas em que o vernáculo do culto mostrava-se correto como um nome no dicionário, mas sem a sedução litúrgica do segredo que, mesmo sem ser nomeado, transparecia nos sentimentos sutis dos versos de Agenor. Nos experimentos, o manejo das palavras nagôs não ia além do artesanato, não se transformava no modo encantatório de pensar, que é a poesia.

   Agora, entretanto, grata surpresa, Cyro de Mattos, com o “punhal tecido de pranto” (“história do corre-costa”) atira “certo na caça” (“quilombo”) deste “Poemas de terreiro e orixás”. Surpresa minha, fique claro, que não sabia Cyro tão próximo do que, para mim, é luz do dia: a luminosidade expansiva de um outro modo de existir e de pensar. Cyro extrai poesia de onde outros simplesmente resvalaram, quero dizer, da matéria resvaladiça, aos olhos de fora, dos cultos afros.

     A experiência primeira do leitor desses poemas é a do ritmo. Cyro me parece escrever respirando e convidar o leitor a entrar no sopro das vozes que atravessam o terreiro por força dos orixás. Quem não quiser entrar no jogo do sentido, faça o jogo do ritmo e se veja aderindo às protoformas que presidem à poesia, ao canto e à música. Não era isso mesmo o que acontecia nos coros da tragédia grega? Não é isso mesmo o que sempre aconteceu no nascimento dos poemas coletivos das sociedades tradicionais da África Negra?

     Faz tempo, faz décadas, muito tempo que não vejo de perto o ficcionista  e poeta Cyro de Mattos. Sim, tinha o cabelo enroladinho, branco não era, mas não o sabia tão negro. Isso importa? Talvez não, mas importa dizer que  os elementos essenciais da melodia poética –– duração, altura e intensidade –– são às vezes como o quiabo colocado no chão por Ogum sob os pés da aguerrida Obá. O que faz Cyro? Não resvala.

 

                                  Muniz Sodré

                  Obá Aressá Nilê Axé Opô Afonjá

                       Doutor em Antropologia (UFRJ)

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