Festa do Negro
Cyro de Mattos
Sua coreografia,
seu colorido,
suas danças,
vento ameno
nas bandeirolas
os olhos enchem.
Toques, gestos,
roupas, prosas,
insígnias, colares.
Ares cheirosos,
embriagadores.
Temperos requintados,
picantes sabores.
Cânticos do transe,
adarrum, adufá,
na descida orixás.
Rum, rumpi, lê,
regidos por alabê.
No Axé Opô Afonjá
é que então percebi
quanta beleza
África irradia
quando desce na Bahia.
Numa roda canta,
numa roda cavalga,
numa Casa santa
que o mal espanta.
(Do livro Poemas de Terreiro e Orixás, Mazza Edições, BH,
2019)
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Modo Encantatório de Pensar o Negro
Muniz Sodré
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O saudoso Agenor
Miranda Rocha, um dos maiores oluôs (adivinho, sacerdote oracular) da tradição
ketu-nagô no Brasil, era também um refinado sonetista. Conhecendo-o de perto,
indaguei-lhe um dia por que jamais compusera um verso sequer sobre as coisas do
culto. Disse-me que a linguagem
simplesmente não o mobilizava nessa direção. Sua temática constante era o amor
–– à divindade, à fraternidade, à natureza, às pessoas. Mas ele escrevia com a
força de fala de um grande portador do axé que, como se diz no candomblé, é “a
luz do dia”.
Noutros poetas, li
tentativas em que o vernáculo do culto mostrava-se correto como um nome no
dicionário, mas sem a sedução litúrgica do segredo que, mesmo sem ser nomeado,
transparecia nos sentimentos sutis dos versos de Agenor. Nos experimentos, o
manejo das palavras nagôs não ia além do artesanato, não se transformava no
modo encantatório de pensar, que é a poesia.
Agora, entretanto,
grata surpresa, Cyro de Mattos, com o “punhal tecido de pranto” (“história do
corre-costa”) atira “certo na caça” (“quilombo”) deste “Poemas de terreiro e
orixás”. Surpresa minha, fique claro, que não sabia Cyro tão próximo do que,
para mim, é luz do dia: a luminosidade expansiva de um outro modo de existir e
de pensar. Cyro extrai poesia de onde outros simplesmente resvalaram, quero
dizer, da matéria resvaladiça, aos olhos de fora, dos cultos afros.
A experiência
primeira do leitor desses poemas é a do ritmo. Cyro me parece escrever
respirando e convidar o leitor a entrar no sopro das vozes que atravessam o
terreiro por força dos orixás. Quem não quiser entrar no jogo do sentido, faça
o jogo do ritmo e se veja aderindo às protoformas que presidem à poesia, ao
canto e à música. Não era isso mesmo o que acontecia nos coros da tragédia
grega? Não é isso mesmo o que sempre aconteceu no nascimento dos poemas
coletivos das sociedades tradicionais da África Negra?
Faz tempo, faz
décadas, muito tempo que não vejo de perto o ficcionista e poeta Cyro de Mattos. Sim, tinha o cabelo
enroladinho, branco não era, mas não o sabia tão negro. Isso importa? Talvez
não, mas importa dizer que os elementos
essenciais da melodia poética –– duração, altura e intensidade –– são às vezes
como o quiabo colocado no chão por Ogum sob os pés da aguerrida Obá. O que faz
Cyro? Não resvala.
Muniz Sodré
Obá
Aressá Nilê Axé Opô Afonjá
Doutor em Antropologia (UFRJ)
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