- Coitado do
Joaquim-Mutamba! Homim bom, tá ali, sem fel, sem peçonha, sem nada...
Na venda do
Chico Quirino, um da roda falava alto:
- Pois, não
é que o Quincas-Mutamba se estrepou! Mundica desmoralizou o cujo de uma vez.
Também, pra quê se engraçar com uma quenga daquelas?
Confidenciavam-se, esgravatando-se o caso. Dizia Zé Orestes na botica de
Sêo Arrudas, enquanto este suspendia a manipulação de um elixir depurativo:
- A Mundica desceu as calças do
lenheiro, prendeu a cabaça do cujo entre as pernas – nossa, que posição
desgraçada, sô – e aplicou, nos traseiros dele, umas boas chineladas. Foi assim
que me contaram, nhor sim... e eu estou vendendo o peixe pelo mesmo preço da
compra...
Filogônio
Arrudas, o boticário, gostava de eufemismos, empregava palavras de pronúncia
difícil, expressões em desuso. Fazia-se de letrado, de prestígio avantajado,
abusando desse artifício. Falou, sorrindo:
- Então, Zé
Orestes, o glúteo do Quincas ficou como se fora cara de menino rico, sanguínea
e edemática, não é assim?
Zé Orestes
confirmou, com um sorriso canalha na boca desdentada, embora não soubesse o
significada daquelas palavras estranhas aos seus ouvidos. Estimulado pela
curiosidade que lia na cara do boticário, Zé Orestas descreveu a cena com tanta
riqueza de detalhes que Filogônio Arrudas e, logo depois, toda a cidade não
tinham mais dúvidas: Quincas-Mutamba
apanhara – e de chinela! – de Raimunda Pindonga, dita Mundica Tomba-Homem, cuia
das mais muito faladas do sertão de Cateriangongo. Não era aquela a primeira de
suas façanhas comentadas. Diziam que ela já havia tirado a pevide de muito
sujeito de pabulagem. Avalentoava-se à toa, a danada. Não deixava a mandioca
pubar. Suas amigas mais chegadas falavam que a cuja era inté criatura prestativa,
mão-aberta, dadeira sem limites. Mais porém, quando gostava de um homem – coisa
não muito frequente – gostava mesmo muito, muito, desse gostar que deixa a gente
de siso raleiro, não admitindo conselhos e insinuações. Sentia ciúmes e
começava a beber. O pior de tudo era que um dedal de restilo esquentava o
sengue dela, e era aquela lazeira. Trepava nos tamancos. Se o cabra não fosse
esperto, virava molambo entre as pernas dela. Remanisca, forçuda pra danar,
dava logo dois tombos no cujo, prendia-lhe os braços entre as coxas musculosas
e se ria, depois, toda ancha, gozando a derrota do espevitado. Se o preferido,
porém, era forte, cabra sem belida, de ideias alimpadas, a mulata, primeiro,
afrouxava as carnes dele com carinhos de sustança; amolentava-lhe as forças com
mixilanga somente dela conhecida e, quando percebia que o sujeito não aguentava
mais uma gata pelo rabo, investia. Aplicava-lhe cabeçadas na barriga, jogava-o
no chão, arranhava-lhe as bochechas. Despois... bom, despois, sentia remorsos
da doidera praticada, passava meizinhas nas feridas do infeliz, chorava,
chorava, implorando-lhe perdão. Despachava aquele, curtia jejum de homem dois
ou três meses. Por via dessas coisas malucas, foi que o apelido “Tomba-Homem”,
que nela se ajustava que nem visgo, pelo sertão se espalhou como azeite que se
derrama em riba da água.
Ora, muito
que bem. Quincas-Mutamba era sujeito estimável. Magro, pacato, pequeno de
corpo, viúvo sem filhos, ganhava a vida fornecendo lenha às cozinhas da Rua dos
Sete Pecados. Madrugadinha, no coice de dois jegues, ia longe, légua e meia ou
mais, voltando à tarde. Entregava um feixe aqui, umas achas acolá. Recebia
magros tostões, passava na venda do Nicácio, fazia suprimento de boca,
engrossava uns dois martelos de pinga, saía meio troviscado. Desencilhava os
jegues, examinava-lhes as cernelhas maceradas. Entendia-se melhor com eles do
que com o resto dos mortais. Naquela vidinha de pobre, vivendo no seu canto,
sem malquerença com os mais, não fedia nem cheirava. Daí a surpresa que causou
a todos aquela notícia estuporada. Nem a cidade suspeitava de suas ligações
amorosas com Mundica Pindonga. Daquele dia em diante, passou ele a viver numa
consumição dos diabos. Inté os meninos da rua se riam dele. Quincas-Mutamba não
teve mais sossego. Embezerrou-se. Não saía mais da venda do Nicácio, não deu
mais palavra a ninguém. Quando o último tostão foi jogado sobre o balcão e o
martelo de restilo lhe tremeu nas mãos incertas, Quincas-Mutamba esquisitou-se.
Fechou o punho, esmurrou o balcão, berrou um nome safado.
- É hoje,
porqueira! Espandongo aquela peste!
Voltou-se
para o vendeiro, os olhos faiscando de ira:
- Quero mais
um trago, mais porém, não quero fiado, nhor não. Pra pagar ele, dou pra vosmecê
o jegue ruano, bichin bom de carga pra danar.
Surpreso,
Nicácio falou, com brandura:
- Não carece
vosmecê se desfazer do bicho por via de uma talagada, nhor não. Boto na conta.
Vosmecê merece mais...
Quincas
interrompeu-o, decidido:
- Mais,
porém, se eu morrer na empreitada? Gardecido, Sêo Nicácio, gardecido. Não lhe
ofendo se não aceitar, ofendo?
Nicácio
retornou, conciliador:
- Ainda que
mal lhe pergunte, por que é que vosmecê está assim, meio animoso? Figuro que
vosmecê não tá à revelia com alguém, ou tá?
Quincas-Mutamba tomou fôlego, abaixou a cabeça, murmurou:
- Quero
exemplar aquela diaba!
- Figuro que
não é gente de sua estimação...
- É de muita
estimação, nhor sim. Mais porém...
O resto da
frase perdeu-se no ar, porque Quincas já estava na rua, trocando pernas.
No FUNDO DO
QUINTAL, ensaboando panos, Mundica cantava. Quincas-Mutamba nem salvou a pobre.
Parou na frente dela – que lhe sorria um largo sorriso de boas-vindas – e foi
insultando:
- Vagabunda!
Se é valentia que corre no tutano do seu braço, porqueira, prove agora, cuia
sem-vergonha!
Mundica
sorria, encalistrada.
- Que bicho
foi que te mordeu, nêgo? Espiritou? Tu andou bebendo, não andou? Não sou de
brigar assim, sem mais nem menos. A frio, brigo não. Se tu botar inflamação no
meu sangue, te esbagaço o esqueleto todo!
Acorreu
gente, ouvindo a xirimbambada.
Quincas não
conversou. Fechou a mão, levantou o braço, desfechou o golpe. Apanhou o ouvido
da mulher, e ela caiu estatelada. Animosamente, ela se levantava, quando recebeu
outro trompaço, no mesmo lugar da primeira pancada. Aí, afocinhou de uma vez.
Quincas pabulou:
- Conheceu,
porqueira? – Sorriu para a assistência, afrouxou o correão, puxou da faca. –
Só queria exemplar a danada. Se quisesse sangrar a bicha, tava na hora. Não sou
esmiolado para fazer uma coisa dessas. E o homem que é macho, mesmo, não mata
mulher. Bate nela, só pra exemplar. – E, como para justificar-se, arrematou: -
Esta porqueira me achou escornado, me tolheu os braços, me arranhou a cara toda
e saiu por aí, boquejando que me bateu. Ora, já se viu despropósito igual?
Podia eu lá viver nessa consumição desgraçada, que me esquisitava inté? Podia?
– Agachou-se, sungou a mulata pelos sovacos, ajudou-a a se levantar, passou o
braço na cintura dela, segredou-lhe: - Te machuquei muito, nêga? Vamos pra
dentro, anda.
E ela, toda
chorosa, ainda estonteada:
- Ocê é ruim
que nem cobra, nêgo. Pra quê fazer uma coisa destas na frente de tanta gente?
(BAZÉ – ESTÓRIAS SERTANEJAS)
Nelson de Faria
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