Os labirintos de Jorge Luís Borges
Cyro de Mattos
O é, o
foi e o será perduram em Borges por entre inúmeros labirintos. Em Buenos Aires
quando segue caminhando, sentindo nas esquinas o hoje tão lento e o ontem tão
breve, nessas esquinas “sem por que nem quando”. Perscruta assim, entre a alba e a noite, esta
história universal, sem esperar que “o rigor desse caminho, que teimosamente se
bifurca em outro, tenha fim.” Em “El Aleph”, a história que acompanhamos abre o
caminho de um novo tipo de literatura, do fantástico, do enredo que vai sendo
devorado pelos labirintos da imaginação. Assim posto em cena labiríntica o
plano fictício e ao mesmo tempo real de “El Aleph”, o microcosmos dos
alquimistas e dos cabalistas consiste em um dos pontos do espaço que contém
todos os pontos. Aqui, o personagem encontra esse lugar onde se encontram, sem
se confundirem, todos os lugares do mundo, vistos de todos os ângulos.
No conto
“Pierre Menard, autor do Quixote”, Borges imagina a história do homem que não
queria compor outro Quixote, não pretendia conceber uma transcrição do original
nem se propunha a copiá-lo. Sua soberba ambição era escrever O Quixote, páginas
que coincidissem, palavra por palavra, linha por linha, com as de Miguel de
Cervantes. Em “O Jardim dos caminhos que se dividem”, ele traça uma extensa
adivinha ou parábola com o tempo, sendo talvez este para a crítica dos contos
mais ricos escritos por Borges. Trata-se de história que espanta e encanta,
pela dualidade em que se encontram a morte e o tempo. Somente no último parágrafo o leitor pode
achar a chave dessa ficção na forma tortuosa em que é executada.
Em “O
imortal”, o tema tratado agora é o da imortalidade dos homens. Borges foca a
situação do homem que sempre procura fugir da morte, após o nascimento. Basta
estar vivo para morrer a cada instante, pensa o homem. Nessa história
impressionante, exercida com linguagem enigmática, percorre-se os labirintos do
tempo e do espaço na tentativa de encontrar a cidade dos imortais, que de tão
distante só existe na imaginação humana. Essa cidade, com sua arquitetura
pródiga em simetrias, ainda que localizada no centro de um deserto
desconhecido, enquanto existir ninguém no mundo poderá ser corajoso e
feliz. É tão horrível que a sua presença
confunde o passado e o futuro.
Borges a concebe,
como um amontoado de palavras complexas, um
corpo de tigre ou de touro, onde pulularam monstruosamente,
conjugando-se e odiando-se, dentes, órgãos e cabeças, podem (talvez) ser
imagens aproximadas.
Há quem
afirme que o escritor só deve escrever sobre o que conhece, viu e viveu. Essa maneira de postular o literário não se
aplica a Jorge Luís Borges, o mais literário dos escritores, o que escreveu e
imaginou o mundo como resultado do que leu e, logo depois que ficou cego em
definitivo, enxergou como poucos seus caminhos metafísicos, sob o rigor do
pensamento e da simetria. Tornou-se por isso mesmo um bruxo impressionante, que
inventava com maestria enredos labirínticos e mitologias metafísicas, sem ter
conhecido fisicamente a paisagem humana e a realidade objeto da sua escrita. E,
assim, lendo e vendo com a alma, imaginando seus mundos criativos, num estilo
sóbrio, passou a ser visto ele próprio como sinônimo de literatura, aquele que
nos lega na poesia, no conto e no ensaio um universo fantástico, insólito e
transcendente.
A
literatura esteve sempre na sua alma, soube isso desde o início, como um
destino a cumprir. Aos seis anos comunicou à família que queria ser escritor. O
menino fora muito cedo iniciado na leitura pela mãe, criatura adorável, que o
incentivava a viver intelectualmente no mundo das letras. Na biblioteca do pai
havia descoberto os livros, esse mundo fantástico das histórias fabulosas onde
iria passar a vida toda. Em idade precoce começou a redigir os primeiros
textos, um conto ao modo de Cervantes e um ensaio sobre mitologia clássica.
Foi no ano
em que começou a Primeira Guerra Mundial que a família de Borges viajou
para a Europa. Em Genebra faz os estudos superiores, na Espanha participa de
saraus e publica poemas em revistas espanholas. Quando regressa a Buenos Aires,
encontra uma cidade diferente, que o encanta e o inspira para escrever os seus
textos labirínticos, de temas metafísicos. Condenado à cegueira, que vinha
gradualmente afetando-o, desde a infância, não viu nela nada de especialmente
patético ou dramático. Submeteu-se a oito operações e, nesse ocaso gradativo,
ficou cego desde os fins de 1950 para a leitura e a escrita. Nessa oportunidade havia escrito o “Poema das
Dádivas” e já era diretor da Biblioteca Nacional. Comentou então da esplêndida
ironia que Deus reservou para ele, concedendo-lhe oitocentos mil livros e a
escuridão.
Condenado
à cegueira por herança paterna, o poeta e prosador que especulou sobre “o livro
dos livros”, observando que não sabe se existe ou se é sonhado por Deus,
lança-nos, em labirintos poéticos arquitetados de luzes e sombras, histórias
fabulosas com galerias de espelhos onde ele explora o tema da dupla identidade.
Jorge Luís Borges é o “fazedor” de outra dimensão da literatura, enredada no
imprevisível, distante do previsível operado pelos realistas com os elementos
da exterioridade circunstante, em que os dados da objetividade são transpostos
para o texto, dando ao ficcionista uma feição de copiador literário.
É um
fazedor de literatura no melhor sentido, com textos extremamente criativos na
direção de contos maravilhosos, ditados pelo pensamento e com uma imaginação
prodigiosa. Falou-nos de um homem, “que se propõe fazer uma pintura do
universo. Depois de muitos anos, cobriu uma parede nua com imagens de navios,
torres, cavalos, armas e homens, só para descobrir, no momento de sua morte,
que desenhara um retrato de seu próprio rosto.”
Labiríntica,
como nesse personagem, é a natureza da literatura de Jorge Luís Borges,
alimentada e respirada em todos os livros que havia lido. Ele sempre viu a
literatura como forma de conhecimento do mundo, fundamental como o amanhecer.
Se não resolve os problemas cruciais da vida, como certa vez declarou, só com
ela e sua linguagem que salva é que podemos atravessar o nosso lado noturno e
alcançar o dia.
Por tantas qualidades excepcionais
de um fino e instigante ficcionista, não se pode deixar de considerar o que, no
final do longo artigo “Uma História do Conto”, dosado com humor, importantes
sinalizações sobre o gênero e seus melhores autores, o escritor Guilhermo
Cabrera Infante acentua a respeito dos contos excepcionais de Jorge Luís
Borges:
Leituras Sugeridas
FERREIRA, Serafim. Jorge Luís Borges, coletânea, Editorial
Presença, Lisboa, 1965.
JOSEF, Bela. História da literatura hispano-americana,
Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 1971.
CERQUEIRA, Dorine. América América: amostragem da ficção
hispano atual, Editus, editora da UESC, Ilhéus, 2011.
BORGES, Jorge Luís. Entrevista em A história é amarela, coletânea,
Editora Abril, São Paulo, 2017.
INFANTE, Guilhermo Cabrera. Uma história do conto, “Folha de
São Paulo”, 30 de dezembro de 2001.
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Cyro de Mattos é ficcionista e poeta. Também editado no
exterior. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa
da UESC.
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