O mascate libanês
Cyro de Mattos
De primeiro foi
mascatear nos povoados, onde era aguardado com ansiedade e recebido com alegria
por gente curiosa. Causava espanto aos tabaréus as novidades que trazia em
mercadoria para ser vendida na porta das casas ou na pracinha pouco acostumada
a visitas como aquela. Às vezes não se entendia o que ele falava naquela língua
estranha, misturando as palavras e arranhando a voz, que saía engraçada. Ficava
em cada povoado pouco tempo, resolvia penetrar a mata hostil, com a mercadoria
nos baús em lombo de mula. Ia abrindo trilhas e atalhos, que serviam para
interligar gente, que de tão distante na tapera e na roça de cereal plantada
pelos fundos, na clareira aberta por machado e facão, não sabia um do outro.
Hoje aqui perto, amanhã nas lonjuras, sem os pais, irmãos,
amigos, doce amor da bela amada, tangendo os burros com a mercadoria nos baús
grandes. Nessas idas e vindas, ia formando caminhos que ligavam os povoados aos
fundos da mata.
Tecedor de sol e chuva, peito armazenado de solidões pela
mata bruta. Respingava de suor no rosto, pulsando com o sangue dos ancestrais
nas veias da madrugada. Picado por carrapato e mosquito, sedento, faminto,
resmungando por trilhas e atalhos no mato grosso. Seda rara, tapete, broche,
anel, perfume, linho, porcelana, revólver, rebenque, espora, lâmpada mágica.
Tudo sacolejava nos baús que os burros levavam, já formando uma tropa pequena e
nova.
Alimentava-se nas veredas com o sonho de se tornar um dia
fazendeiro de vastas roças de cacau, nas horas de maior solidão ajoelhava-se.
Inclinava o peito para frente várias vezes seguidas. Apoiando-se com as mãos no
chão coberto de folhas secas, contrito, sob o silêncio imenso da mata trevosa,
beijava o chão e emitia cânticos orantes:
Ilumina-me,
Alá
Com o teu espírito,
Ilumina-me,
Ilumina-me,
Deixa-me sentir
Aqui no coração
Todo o teu calor,
Todo o teu amor
Para sempre,
Para sempre.
Ilumina-me, Alá,
Com o teu espírito,
Ilumina-me,
Ilumina-me,
Deixa-me sentir
Aqui na minha mente
O brilho bem forte
De todo o teu amor
Para sempre,
Para sempre.
Cyro de Mattos é escritor e poeta. Publicado por várias editoras na Europa. Premiado no Brasil,
Itália, Portugal e México. Membro da Academia de Letras da Bahia. Doutor
Honoris Causa pela UESC.
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