Arte como esperança: Cyro de Mattos
Oscar
D’Ambrosio*
Prêmio Jorge Portugal de Literatura da Secretaria de Cultura
da Bahia (SECULTBA) de 2020, “Canto até hoje” é uma Edição Comemorativa dos
Sessenta Anos de Atividades Literárias de Cyro de Mattos. O conjunto de obras,
já publicadas e inéditas, constitui um painel da criação de um artista a favor
da liberdade e contra qualquer tipo de suplício.
Explico melhor lembrando de três sofrimentos célebres
impostos pelas divindades gregas. Tântalo, por exemplo, sofreu eternamente sem
poder comer ou beber. Mesmo rodeado de água até o pescoço, ele não podia
alcançá-la, pois, quando tentava beber, ela baixava o nível e, ao tentar pegar
frutos, os galhos das árvores estendiam-se para além dos seus braços.
Íxion, por sua vez, foi amarrado a uma roda em chamas. Em
lugar de cordas, foram utilizadas serpentes; e ele recebeu como punição girar
no calor do inferno. Assim como no Tântalo, a dor é eterna e sem possibilidade
aparente de escapatória, pois as punições divinas são justamente assim:
terríveis e permanentes.
E temos ainda Sísifo, que recebeu como castigo empurrar uma
pedra até o topo de uma montanha. Toda vez que estava chegando ao alto, a
rocha rolava novamente ao ponto de partida, tornando, assim, a atividade um
labor eterno, que se torna uma metáfora, do mesmo modo que os casos anteriores,
da estagnação do ser humano.
A poesia de Cyro de Mattos é uma resposta aos suplícios.
Contra a dor de Tântalo, que não consegue atingir o que deseja, melhor ler o
poema abaixo:
Árvore dos Frutos Dourados
O cacaueiro
é sedução
da aurora
ao crepúsculo.
Cílios,
impressões
de folhas,
a fio e prumo
segredo.
Os versos apresentam aquilo que o universal artista da
palavra baiano tem de melhor: a observação poética do cotidiano para construir
um lirismo em que as árvores de Tântalo se tornam objeto de sutil sedução e de
esperança, pois “da aurora ao crepúsculo” existem as “impressões de folhas”
nunca iguais, sempre repletas de segredos.
Os “frutos dourados” da árvore da arte também auxiliam
Íxion. Para enfrentar o seu eterno rodar marcado pelas víboras e pelo calor do
mundo subterrâneo, aponto o dístico “O Jabuti” e o haicai “Varal”, de Cyro de
Mattos:
O Jabuti
Geológicas passadas
quem tem pressa tropeça
Varal
Manhã colorida.
Voz desse mundo sem mancha.
Sonhar é preciso.
A sabedoria simbolizada pelo animal, que administra o tempo
de sua maneira toda especial, caracterizada por um vagar sem desespero pela
existência, encontra um paralelo na manutenção do sonho, que se renova a cada
manhã por mais improvável que isso possa parecer nas mais variadas situações.
Acreditar em algum tipo de futuro também é mentalmente
saudável para Sísifo. Saber que seu esforço aparentemente inútil não é só dele,
mas é de toda a humanidade, pode ser um consolo, uma pílula de realismo, como
aponta o poema...
A Relva e a Foice
Aventura solitária
humano destino ter
entre estar e ir
basta vir para sair
renascer sem fim
como um talo de capim?
Ai de mim na relva,
ais que doem na lâmina,
eu que vislumbro estrelas,
indiferentes perscrutam-me.
A aventura solitária de todo ser humano é, no fundo, a de
todo e qualquer ser vivo. Nascer é morrer em um ciclo interno, no qual o
trabalho é uma das facetas de uma caminhada existencial que muitas vezes pode
parecer não ter sentido algum, pois as estrelas indiferentes tudo olham, mas
sem se manifestar, ao menos aparentemente.
As palavras de Carlos Drummond de Andrade a Cyro de Mattos,
escritas no Rio de Janeiro, em 1980, parecem resumir bem como o poeta combate,
com suas criações, o suplício da vida:
Drummond a Cyro
Uma notícia irrompe desta árvore
e ganha o mundo: verde anúncio eterno
Certo invisível pássaro presente
murmura uma esperança a teu ouvido.
As visões (“notícias”) que surgem da existência (“árvore”),
na voz poética de Cyro de Mattos, se espalham permeadas pela natureza e pela
esperança anunciada pelos célebres olhos verdes de Pandora, a primeira mulher
do mito grego que, como o próprio nome indica, tinha todos os dons, mas também
carregava em sua célebre caixinha todos os males que nos preenchem internamente
e nos rodeiam para sempre.
O pássaro a murmurar esperanças é o poeta. O canto que Cyro
de Mattos faz até hoje é o seu dizer individual que se conecta com a sociedade
e o mundo. A obra reunida do artista da palavra é um delicado grito de crença e
de esperança no futuro que serve como bálsamo para as dores internas e externas
de Tântalo, Íxion e Sísifo, cujas agruras, em última análise, são as de todos
nós.
*Oscar D'Ambrosio é jornalista, graduado em
Letras (Português/Inglês), com especialização em Literatura Dramática
(ECA-USP), mestrado em Artes Visuais (Unesp) e doutorado e pós-doutorado no
Programa de Educação Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana
Mackenzie.
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