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quinta-feira, 7 de julho de 2022

MENINO BOM, TÁ AÍ! – Nelson de Faria

 


                                                     “Quem quer se fazer não pode.

                                                      Quem é bom já nasce feito.”

                                                                                                 DITO POPULAR

 

            Havia gente, e muita, à porta do Bilhar Taco de Ouro, na Rua de Baixo, de Gabriel Monarca, também, conhecido por Biezinho Cururu, por via da cara gorda e bexiguenta, da boca resgada de orelha a orelha, quando ele ria, dos olhos negros saltados. Muito sujeito fraco e desprevenido experimentarão peso do braço dele, por inadvertência ou desconhecimento da jeriza que Biezinho devotava ao apelido, que, por sinal, lhe assentava bem, como luva. No Taco de Ouro, faziam ponto motoristas, boiadeiros, viajantes, pessoas desocupadas da vila. De instante a instante o grupo engrossava. O ar, viciado de fumo e odores de aguardente, era pesado, denso. Cabo Adonias, comandante do destacamento policial, foi chamado, às pressas. Acontecimento como aquele, desenrolado minutos antes, era raro no centro da cidadezinha. Nos arredores dela, nas vendas de ponta de rua, às vezes, umas duas ou três por ano, falando a verdade, o fato não despertava mais tanta atenção. O movimento às janelas e portas da Rua Direita era desusado. O prefeito, Major Suçuarana, sujeito valente, caladão, malicioso,  de faro fino, que nem o de raposa, arrastou a cadeira de vime para o passeio, refastelou-se nela, fingindo-se alheio ao que ocorrera na parte baixa de rua principal. Olhava, de soslaio, os jornais chegados pela manhã desdobrados à sua frente, pigarreava, gozando o espetáculo. Os três soldados, em cadência marcial, marchavam – um, dois, um, dois – sob as ordens do Cabo. Juntaram os calcanhares com estrépito, fazendo alto.  – Meia volta... volver! – Foi a ordem, seca, esganiçada, do comandante, no meio da rua, a cinco metros do prefeito. Cabo Adonias avançou, parou, levou a mão à pala do quepe, depois, em posição de sentido, aguardou ordens.

            - Faça recolher o defunto à sala da guarda. Enterre ele amanhã, depois que o Clodoaldo fizer o laudo do corpo de delito. Não convém muito alarido, muitas diligências. O rapaz, se bem andou, já botou muitas léguas atrás dele. Além do mais... – Coçou a cabeça, olhou em volta, certificando-se de que ninguém estava por perto, concluiu: - Quem caça, acha. Aquele sujeito carecia ser exemplado...

            - Antão, com sua licença, chefe. As ordens serão cumpridas.

            Os  soldados fizeram meia volta, continuaram o caminho.

            No chão, cimentado, caído de costas, as mãos escuras cruzadas sobre o peito largo, os olhos muito abertos, estava o corpo do motorista Zé Matias. Um filete de sangue fluía-lhe do canto da boca entreaberta. Mãos piedosas colocaram uma vela acesa ao lado dele. Cabo Adonias, impondo a autoridade do cargo, inflou as bochechas, estufou o peito, berrou:

            - Qual foi o enxerido que virou ele?

            As conversas pararam de repente. Havia susto nos olhos dos homens. Abriram roda, entreolhando-se. Voz pastosa, indicativa de criatura em início de embriaguez, rompeu o silêncio:

            - Saiba vossa senhoria que foi esta sua criada, aqui, que revirou o pobre, que golfava sangue da boca, e tava se afogando nele. – Fez uma pausa, levantou mais a cabeça de cabelos oxigenados, continuou: - Vosmecê, comandante, carece ter mais caridade com o falecido....

            Era Fifina, um pedacinho de mulher, deste tamanho, ainda bonita, apesar dos dois caninos chumbados a ouro e da vida dissipada que levava. Bichinha valente, pra danar, já havia espancado umas três concorrentes, anavalhado a cara de um rapazinho que se metera a besta com ela. Arrotava valentia, não tinha papas na língua.

            Adonias fitou a mulher bem dentro dos olhos dela, lembrou-se dos abraços apertados, das boquinhas gostosas que a diabinha sabia dar. Fechou o cenho, falou alto, voltado para os homens, para não magoar a mulher:

            - Lei é lei, Dona Josefina. A lei diz que ninguém pode mexer em defunto matado, para não desfazer as pistas, não atrapalhar a investigação. Desta vez, perdoo a ignorância da lei e dos regulamentos...

            - Deve estar correto o que vosmecê fala, comandante. Não sei nada de leis. Mais porém, deixar um vivente se acabar, como este aí, cora o coração da gente. Me desculpe se agravo vosmecê. Deixo não, gente, deixo não...

            Cuspiu no cimento do chão, passou as costas da mão na baba que lhe escorria dos lábios pintados, arrepanhou as saias, empurrou os homens que fechavam o círculo em torno dela, refugiou-se a um canto do salão. Caiu sobre uma mesa, desandou a soluçar, babando e chorando... Cabo Adonias tentou arrolar testemunhas do crime. Ninguém vira nada, ninguém sabia de nada. Biezinho contava: “O motorista parou o caminhão, chegou de junto do balcão e pediu um martelo de pinga. Ofereceu um gole pra mim, recebeu resposta de negação, porque eu não bebo; perguntei se queria mais. ‘Nhor não, foi a resposta. Só unzinho, pra clarear as vistas. Vou viajar a noite toda, quero chegar em casa de madrugada.’ Arrolhei a garrafa e levei a venenosa para a prateleira. Ouvi um barulhinho, às minhas costas, que nem dava para assustar um gato. Quando voltei o rosto, vi o extinto, o cujo aí, rodando nos calcanhares, as mãos na barriga, gemendo e soluçando. Um outro homem, que eu não vi chegar, afastou o corpo, para o ofendido não murchar em riba dele... Mais porém, não conheço o rapaz que fez o serviço, nhor não!”

            Aquilo era esperado por muita gente que conhecia o morto. Zé Matias, morador do arraial da Estiva, comprara um Fê-Nê-Mê, vivia transportando mercadorias de e para Salvador. Sujeito casado, pai de filhos, perdera a vergonha, o respeito dos mais. Viciou-se em engambelar mocinhas, induzindo-as com promessas de bons ordenados nas casas ricas da Bahia. Abusava das pobrezinhas, tirava-lhes os vinténs, se os possuíssem, largava-as nas cidades pequenas, por onde passasse, ou nos acampamentos, à beira das estradas. A última que viajou à boleia do carro dele foi Mariazinha, já de casamento conversado com Zé Procópio, rapazinho calado, manso, que, diziam, era incapaz de matar uma pulga.

            Fazia três meses que o rapazinho vivia em desassossegada andança. Ao entardecer, hora de chegarem motoristas que vinham de longe, ficava rondando portas de vendas e pensões.

            Naquele dia, à boquinha da noite, Zé Procópio aberturou o cujo e rasgou o bucho dele... Uns poucos viram o rapaz limpar a faca suja de sangue na perna da calça, colocá-la na bainha, sair andando de modo leviano, que nem inocente, e entrar na casa do prefeito. Quando Cabo Adonias parou, fazendo continência, Zé Procópio, que espiava a cena por uma fresta de janela da sala de visitas, estremeceu, suando frio. Depois, sorriu, ouvindo as ordens do chefe. Ajeitou o corpo, limpou o suor da testa e dos beiços, continuou a espiar o movimento da rua, o pensamento viajando por longe, muito longe. Indagava-se: “Por onde andaria Mariazinha, a culpada de tudo aquilo?”

 

            O OLHO CLÍNICO do Major Suçuarana descobriu, sem tardança, as qualidades de bom pistoleiro que dormiam dentro de Zé Procópio, despertadas naquela tarde. A calculada fuga da cena do crime, a calma do procedimento dele, procurando abrigo à sombra do maioral, sem deixar que muitos o vissem entrando na casa, a fala mansa do moço, relatando o fato, como se aquilo nada significasse: “Major, me garante minha pessoa porque mandei, agorinha mesmo, um danado pras profundas...” – tudo aquilo, e mais o jeito dele, humilde, sonso, eram qualidades apreciáveis num primário, bem pesadas pela experiência sertaneja do Major Suçuarana. Quando o corpo do morto passou pela frente da casa, era noite fechada. Suçuarana chamou o rapaz. Postados à janela, os dois viram a rede balançando-se, levada por dois soldados, Cabo Adonias à frente deles, com uma lanterna elétrica na mão. Zé Procópio sentiu um arrepio percorrendo-lhe o corpo, dos pés à cabeça. Quis recuar para a escuridão da sala. Uma sensação de enjoo tomava-lhe todo o estômago. Ouviu a voz seca, autoritária do padrinho:

            - Com medo? Homem, que é macho mesmo, não fraqueja. Aguenta ver, sem trastejar o malfeito que cometeu.

            - Nhor sim. Mais porém,  tou todo arrepiado, sentindo um entojo, parecendo de mulher almojada...

          - Pois, então, vamos curar a doença, que é coisa sem significância. Me siga, sem debicar do finado, sem conversar com os mais, como se não conhecesse ninguém.

            O defunto estava largado no chão duro, atijolado. O busto desnudo mostrava largo e comprido talho, que ia da caixa dos peitos à cova do umbigo. Golpe horrível, deixando entrever vísceras sanguinolentas e destroçadas. Suçuarana chegou de manso, quase sem ser pressentido. Recebeu as continências de estilo, tirou o chapéu, olhou demoradamente o corpo desventrado. Não disse palavra. Cabo Adonias contou:

            - Sujeito destemido, esse um que fez o serviço. Ir pra riba do cabra, encalcar nele palmo e meio de  aço, bem no bucho, sem boquejar, sem tremer a mão, é valentia danada, de se invejar. Ora, pois. Coisa parecida, que me acode ao bestunto, só vim no Mato Verde, faz tempo, quando eu era anspeçada. Foi o caso de um sujeito abrir a barriga de uma dona prostituta inté nas partes, lá dela – com licença da palavra – numa vezada só...

            Major Suçuarana arregaçou o canto da boca num sorriso tranquilo, olhou de viés para os curiosos amontoados à porta, enxergou, de uma mistura com quatro ou cinco, Zé Procópio, os olhos brilhando, sem uma contração na cara morena e séria. Pôs o chapéu na cabeça, puxou a aba dele sobre a testa. Despediu-se. Perdeu-se na noite escura. À sua retaguarda, colado a ele que nem sombra, o novo guarda-costas, fazendo jus ao pensamento do chefe: “Menininho bom, tá aí! Nem pestanejou. O diabinho vai longe...”

 

(BAZÉ – ESTÓRIAS SERTANEJAS)

Nelson de Faria

 

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O escritor NELSON DE FARIA

Julgado pela crítica brasileira:

 

          “Os novos contos, são da mesma alta qualidade dos anteriores. A mão do mestre se reconhece em qualquer dos seus contos.”

RIBEIRO COUTO

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