“Quem quer se fazer não pode.
Quem é bom já nasce feito.”
DITO POPULAR
Havia
gente, e muita, à porta do Bilhar Taco de Ouro, na Rua de Baixo, de Gabriel
Monarca, também, conhecido por Biezinho Cururu, por via da cara gorda e bexiguenta,
da boca resgada de orelha a orelha, quando ele ria, dos olhos negros saltados.
Muito sujeito fraco e desprevenido experimentarão peso do braço dele, por
inadvertência ou desconhecimento da jeriza que Biezinho devotava ao apelido,
que, por sinal, lhe assentava bem, como luva. No Taco de Ouro, faziam ponto
motoristas, boiadeiros, viajantes, pessoas desocupadas da vila. De instante a
instante o grupo engrossava. O ar, viciado de fumo e odores de aguardente, era
pesado, denso. Cabo Adonias, comandante do destacamento policial, foi chamado,
às pressas. Acontecimento como aquele, desenrolado minutos antes, era raro no
centro da cidadezinha. Nos arredores dela, nas vendas de ponta de rua, às
vezes, umas duas ou três por ano, falando a verdade, o fato não despertava mais
tanta atenção. O movimento às janelas e portas da Rua Direita era desusado. O
prefeito, Major Suçuarana, sujeito valente, caladão, malicioso, de faro fino, que nem o de raposa, arrastou a
cadeira de vime para o passeio, refastelou-se nela, fingindo-se alheio ao que
ocorrera na parte baixa de rua principal. Olhava, de soslaio, os jornais
chegados pela manhã desdobrados à sua frente, pigarreava, gozando o espetáculo.
Os três soldados, em cadência marcial, marchavam – um, dois, um, dois – sob as ordens
do Cabo. Juntaram os calcanhares com estrépito, fazendo alto. – Meia volta... volver! – Foi a ordem, seca,
esganiçada, do comandante, no meio da rua, a cinco metros do prefeito. Cabo
Adonias avançou, parou, levou a mão à pala do quepe, depois, em posição de
sentido, aguardou ordens.
- Faça
recolher o defunto à sala da guarda. Enterre ele amanhã, depois que o Clodoaldo
fizer o laudo do corpo de delito. Não convém muito alarido, muitas diligências.
O rapaz, se bem andou, já botou muitas léguas atrás dele. Além do mais... –
Coçou a cabeça, olhou em volta, certificando-se de que ninguém estava por
perto, concluiu: - Quem caça, acha. Aquele sujeito carecia ser exemplado...
- Antão,
com sua licença, chefe. As ordens serão cumpridas.
Os
soldados fizeram meia volta, continuaram o caminho.
No chão,
cimentado, caído de costas, as mãos escuras cruzadas sobre o peito largo, os
olhos muito abertos, estava o corpo do motorista Zé Matias. Um filete de sangue
fluía-lhe do canto da boca entreaberta. Mãos piedosas colocaram uma vela acesa
ao lado dele. Cabo Adonias, impondo a autoridade do cargo, inflou as bochechas,
estufou o peito, berrou:
- Qual foi
o enxerido que virou ele?
As
conversas pararam de repente. Havia susto nos olhos dos homens. Abriram roda,
entreolhando-se. Voz pastosa, indicativa de criatura em início de embriaguez,
rompeu o silêncio:
- Saiba
vossa senhoria que foi esta sua criada, aqui, que revirou o pobre, que golfava
sangue da boca, e tava se afogando nele. – Fez uma pausa, levantou mais a
cabeça de cabelos oxigenados, continuou: - Vosmecê, comandante, carece ter mais
caridade com o falecido....
Era
Fifina, um pedacinho de mulher, deste tamanho, ainda bonita, apesar dos dois
caninos chumbados a ouro e da vida dissipada que levava. Bichinha valente, pra
danar, já havia espancado umas três concorrentes, anavalhado a cara de um
rapazinho que se metera a besta com ela. Arrotava valentia, não tinha papas na
língua.
Adonias
fitou a mulher bem dentro dos olhos dela, lembrou-se dos abraços apertados, das
boquinhas gostosas que a diabinha sabia dar. Fechou o cenho, falou alto,
voltado para os homens, para não magoar a mulher:
- Lei é
lei, Dona Josefina. A lei diz que ninguém pode mexer em defunto matado, para
não desfazer as pistas, não atrapalhar a investigação. Desta vez, perdoo a
ignorância da lei e dos regulamentos...
- Deve
estar correto o que vosmecê fala, comandante. Não sei nada de leis. Mais porém,
deixar um vivente se acabar, como este aí, cora o coração da gente. Me desculpe
se agravo vosmecê. Deixo não, gente, deixo não...
Cuspiu no
cimento do chão, passou as costas da mão na baba que lhe escorria dos lábios pintados,
arrepanhou as saias, empurrou os homens que fechavam o círculo em torno dela,
refugiou-se a um canto do salão. Caiu sobre uma mesa, desandou a soluçar,
babando e chorando... Cabo Adonias tentou arrolar testemunhas do crime. Ninguém
vira nada, ninguém sabia de nada. Biezinho contava: “O motorista parou o
caminhão, chegou de junto do balcão e pediu um martelo de pinga. Ofereceu um
gole pra mim, recebeu resposta de negação, porque eu não bebo; perguntei se
queria mais. ‘Nhor não, foi a resposta. Só unzinho, pra clarear as vistas. Vou
viajar a noite toda, quero chegar em casa de madrugada.’ Arrolhei a garrafa e
levei a venenosa para a prateleira. Ouvi um barulhinho, às minhas costas, que
nem dava para assustar um gato. Quando voltei o rosto, vi o extinto, o cujo aí,
rodando nos calcanhares, as mãos na barriga, gemendo e soluçando. Um outro
homem, que eu não vi chegar, afastou o corpo, para o ofendido não murchar em
riba dele... Mais porém, não conheço o rapaz que fez o serviço, nhor não!”
Aquilo era
esperado por muita gente que conhecia o morto. Zé Matias, morador do arraial da
Estiva, comprara um Fê-Nê-Mê, vivia transportando mercadorias de e para
Salvador. Sujeito casado, pai de filhos, perdera a vergonha, o respeito dos
mais. Viciou-se em engambelar mocinhas, induzindo-as com promessas de bons
ordenados nas casas ricas da Bahia. Abusava das pobrezinhas, tirava-lhes os
vinténs, se os possuíssem, largava-as nas cidades pequenas, por onde passasse,
ou nos acampamentos, à beira das estradas. A última que viajou à boleia do
carro dele foi Mariazinha, já de casamento conversado com Zé Procópio,
rapazinho calado, manso, que, diziam, era incapaz de matar uma pulga.
Fazia três
meses que o rapazinho vivia em desassossegada andança. Ao entardecer, hora de
chegarem motoristas que vinham de longe, ficava rondando portas de vendas e
pensões.
Naquele
dia, à boquinha da noite, Zé Procópio aberturou o cujo e rasgou o bucho dele...
Uns poucos viram o rapaz limpar a faca suja de sangue na perna da calça, colocá-la
na bainha, sair andando de modo leviano, que nem inocente, e entrar na casa do
prefeito. Quando Cabo Adonias parou, fazendo continência, Zé Procópio, que
espiava a cena por uma fresta de janela da sala de visitas, estremeceu, suando
frio. Depois, sorriu, ouvindo as ordens do chefe. Ajeitou o corpo, limpou o
suor da testa e dos beiços, continuou a espiar o movimento da rua, o pensamento
viajando por longe, muito longe. Indagava-se: “Por onde andaria Mariazinha, a culpada
de tudo aquilo?”
O OLHO
CLÍNICO do Major Suçuarana descobriu, sem tardança, as qualidades de bom
pistoleiro que dormiam dentro de Zé Procópio, despertadas naquela tarde. A calculada
fuga da cena do crime, a calma do procedimento dele, procurando abrigo à sombra
do maioral, sem deixar que muitos o vissem entrando na casa, a fala mansa do moço,
relatando o fato, como se aquilo nada significasse: “Major, me garante minha
pessoa porque mandei, agorinha mesmo, um danado pras profundas...” – tudo aquilo,
e mais o jeito dele, humilde, sonso, eram qualidades apreciáveis num primário,
bem pesadas pela experiência sertaneja do Major Suçuarana. Quando o corpo do
morto passou pela frente da casa, era noite fechada. Suçuarana chamou o rapaz. Postados
à janela, os dois viram a rede balançando-se, levada por dois soldados, Cabo
Adonias à frente deles, com uma lanterna elétrica na mão. Zé Procópio sentiu um
arrepio percorrendo-lhe o corpo, dos pés à cabeça. Quis recuar para a escuridão
da sala. Uma sensação de enjoo tomava-lhe todo o estômago. Ouviu a voz seca,
autoritária do padrinho:
- Com
medo? Homem, que é macho mesmo, não fraqueja. Aguenta ver, sem trastejar o
malfeito que cometeu.
- Nhor sim.
Mais porém, tou todo arrepiado, sentindo
um entojo, parecendo de mulher almojada...
- Pois,
então, vamos curar a doença, que é coisa sem significância. Me siga, sem
debicar do finado, sem conversar com os mais, como se não conhecesse ninguém.
O defunto
estava largado no chão duro, atijolado. O busto desnudo mostrava largo e
comprido talho, que ia da caixa dos peitos à cova do umbigo. Golpe horrível,
deixando entrever vísceras sanguinolentas e destroçadas. Suçuarana chegou de
manso, quase sem ser pressentido. Recebeu as continências de estilo, tirou o
chapéu, olhou demoradamente o corpo desventrado. Não disse palavra. Cabo Adonias
contou:
- Sujeito
destemido, esse um que fez o serviço. Ir pra riba do cabra, encalcar nele palmo
e meio de aço, bem no bucho, sem
boquejar, sem tremer a mão, é valentia danada, de se invejar. Ora, pois. Coisa parecida,
que me acode ao bestunto, só vim no Mato Verde, faz tempo, quando eu era
anspeçada. Foi o caso de um sujeito abrir a barriga de uma dona prostituta inté
nas partes, lá dela – com licença da palavra – numa vezada só...
Major Suçuarana
arregaçou o canto da boca num sorriso tranquilo, olhou de viés para os curiosos
amontoados à porta, enxergou, de uma mistura com quatro ou cinco, Zé Procópio,
os olhos brilhando, sem uma contração na cara morena e séria. Pôs o chapéu na
cabeça, puxou a aba dele sobre a testa. Despediu-se. Perdeu-se na noite escura.
À sua retaguarda, colado a ele que nem sombra, o novo guarda-costas, fazendo
jus ao pensamento do chefe: “Menininho bom, tá aí! Nem pestanejou. O diabinho
vai longe...”
(BAZÉ – ESTÓRIAS SERTANEJAS)
Nelson de Faria
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O escritor NELSON DE FARIA
Julgado pela crítica brasileira:
“Os novos
contos, são da mesma alta qualidade dos anteriores. A mão do mestre se reconhece
em qualquer dos seus contos.”
RIBEIRO COUTO
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