A Soberba Viagem
Cyro de Mattos
Sempre quis mundos ignorados,
a lua com sua prata na caverna
resvalava no meu olho provocado.
Saí como lesma de rastro brilhante
por entre pedras e escorpiões
sem saber tomar a direção certa.
O tempo modelou meu grosso
pelo nas pegadas do primata,
teceu-me de ira excedida
na aurora sorvida com o sangue
do que encontrava, meus ciclos
como acasos, ocasos, ó infância.
O fogo que dominei após eras
aqueceu-me na aspereza das horas,
alimentou-me enquanto a noite
obscura escondeu-me na caçada,
até hoje meu ser na vida instintiva
sabe a caçador de répteis e insetos.
Rolei nos séculos com as mãos
que tudo transformam. Metade
terra, metade céu. Sem paraíso
meus pés andaram com os ventos,
na minha biografia vi-me como fera
desde cedo nesse grito: “É meu!”
O egoísmo em que me inventei
produziu territórios de avidez
que se atropelaram na mente,
armazenaram na alma a agonia.
Mastiguei o que chamei vitória
no litoral atacado de horrores,
agi com assombros e miasmas
da mãe terra no verde dizimada.
.
Nuvens de amanhecer na maré
prepararam-me outros abismos,
da rota longínqua concebida
de monstros, medos tenebrosos,
submeti Polifemo ao meu arco,
medusas desencantei, amei sereias.
Singrei em ondas de escorbuto
com os que oravam em vão,
na aventura de funduras e largos
estendida por ondas incertas,
nos ventos de fé e esperança
dos que vieram ou ficaram
molhados de salgada aflição.
Esse amanhã heroicamente
de remoto reino edificado
na busca dos beijos da verdade.
Noite, tempo, vida, solidão,
água, fogo, terra, ar: os desvãos.
Bem soube, pois sou navegador,
que viver não é o que importa,
mais valia alcançar os horizontes,
recolher os frutos da vontade,
o mérito ter como saudade.
Por essa luz de sol quente
um sino em mim se enroscou,
a tatuagem fixou-se nesses brios
a subir das espumas meu jeito
de tecedor de estrelas no peito
de tanto fiar dia e noite os ventos.
Rosários de luz cintilavam
nos olhos do infante antes
pela janela do quarto,
bisaram meus olhos vítreos
no sem fim de galáxias
pela janela da nave hoje.
No seio da moça
pousei,
vi quanto o meu querer
fez dos sonhos a esperança.
Chorei, supliquei aos anjos
que me livrassem da máquina
monstruosa que fabriquei
para matar-me e aos outros
nos anos de fogo onde tombo.
Contente senti o coração
na manhã seguinte com doçura,
livre dos grilhões que impediam
fosse generosa essa viagem,
houvesse nos prados os pássaros.
Voltei com rações promissoras,
água da fonte boa para todos,
linda lira tocava com as cores
do arco-íris em suas cordas.
Assim o aerólito colombino,
pelas vastidões do sem fim
optou pelo canto mavioso
do novo dia, sem abrir mão
desse bendito ramo verde
tirado de coisas sensatas
para encher de sereno a ternura.
Da cena enramada no bico
deixei que eu viesse utópico,
sabedor duma união geral
no sono que mantém um sonho
capaz de derrotar todos os danos
no enfrentamento dessa vida
urdida há milênios por ódios.
Já me avistava no lar esférico
do que me tornei com fortes laços.
Pelos campos onde os olhos
aprendem o amor com sobras
exalavam suspiros e enleios.
Sem mais precisar da lágrima
que derrame dores constantes
advindas de disputas perversas,
que a vida se torna afável quando
venerada nas tuas leis, mãe azul.
Basta-me ser os agrados
que dos céus
herdastes
pois que dos céus és filha.
E eu no enigma de ti sou fruto
mais o outro no jogo do mundo.
Decerto agora razão e emoção
no som dessa música próxima
afloram anunciando a benção
dessas rações de tudo para todos,
entre os verdes que despontam
e os maduros caindo aos montes.
-----
Cyro de Mattos é ficcionista e poeta. Também editado no
exterior. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Membro efetivo da
Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris
Causa da UESC.
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário