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sábado, 23 de julho de 2022

A SOBERBA VIAGEM – Cyro de Mattos

 


A Soberba Viagem 

Cyro de Mattos

 

Sempre quis mundos ignorados,

a lua com sua prata na caverna 

resvalava no meu olho provocado.  

Saí como lesma de rastro brilhante

por entre pedras e escorpiões   

sem saber tomar a direção certa.

 

O tempo modelou meu grosso

pelo nas pegadas do primata,

teceu-me de ira excedida

na aurora sorvida com o sangue

do que encontrava, meus ciclos

como acasos, ocasos, ó infância.

 

O fogo que dominei após eras

aqueceu-me na aspereza das horas,

alimentou-me enquanto a noite  

obscura escondeu-me na caçada,

até hoje meu ser na vida instintiva 

sabe a caçador de répteis e insetos.

 

Rolei nos séculos com as mãos

que tudo transformam. Metade

terra, metade céu. Sem paraíso

meus pés andaram com os ventos,

na minha biografia vi-me como fera  

desde cedo nesse grito: “É meu!”

 

O egoísmo em que me inventei 

produziu territórios de avidez

que se atropelaram na mente,

armazenaram na alma a agonia.

Mastiguei o que chamei vitória

no litoral atacado de horrores,

agi com assombros e miasmas

da mãe terra no verde dizimada.

.

Nuvens de amanhecer na maré

prepararam-me outros abismos,

da rota longínqua concebida

de monstros, medos tenebrosos,

submeti Polifemo ao meu arco,

medusas desencantei, amei sereias. 

 

Singrei em ondas de escorbuto

com os que oravam em vão,

na aventura de funduras e largos

estendida por ondas incertas,

nos ventos de fé e esperança

dos que vieram ou ficaram

molhados de salgada aflição.

Esse amanhã heroicamente

de remoto reino edificado

na busca dos beijos da verdade.

 

Noite, tempo, vida, solidão,

água, fogo, terra, ar: os desvãos.

Bem soube, pois sou navegador,

que viver não é o que importa,

mais valia alcançar os horizontes,

recolher os frutos da vontade,

o mérito ter como saudade.  

 

Por essa luz de sol quente

um sino em mim se enroscou,

a tatuagem fixou-se nesses brios

a subir das espumas meu jeito

de tecedor de estrelas no peito

de tanto fiar dia e noite os ventos.

 

Rosários de luz cintilavam

nos olhos do infante antes

pela janela do quarto,

bisaram meus olhos vítreos

no sem fim de galáxias

pela janela da nave hoje.

                    

 No seio da moça pousei, 

vi quanto o meu querer

fez dos sonhos a esperança. 

Chorei, supliquei aos anjos

que me livrassem da máquina

monstruosa que fabriquei 

para matar-me e aos outros

nos anos de fogo onde tombo. 

 

Contente senti o coração

na manhã seguinte com doçura,   

livre dos grilhões que impediam

fosse generosa essa viagem,    

houvesse nos prados os pássaros.  

Voltei com rações promissoras,

água da fonte boa para todos,

linda lira tocava com as cores  

do arco-íris em suas cordas.        

  

Assim o aerólito colombino,

pelas vastidões do sem fim

optou pelo canto mavioso

do novo dia, sem abrir mão

desse bendito ramo verde

tirado de coisas sensatas  

para encher de sereno a ternura.   

 

Da cena enramada no bico

deixei que eu viesse utópico,

sabedor duma união geral

no sono que mantém um sonho

capaz de derrotar todos os danos

no enfrentamento dessa vida

urdida há milênios por ódios.

Já me avistava no lar esférico

do que me tornei com fortes laços.  

 

Pelos campos onde os olhos

aprendem o amor com sobras

exalavam suspiros e enleios. 

Sem mais precisar da lágrima

que derrame dores constantes  

advindas de disputas perversas,

que a vida se torna afável quando

venerada nas tuas leis, mãe azul.

 

Basta-me ser os agrados

 que dos céus herdastes

pois que dos céus és filha.

E eu no enigma de ti sou fruto

mais o outro no jogo do mundo.

Decerto agora razão e emoção 

no som dessa música próxima

afloram anunciando a benção

dessas rações de tudo para todos,

entre os verdes que despontam

e os maduros caindo aos montes.

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Cyro de Mattos é ficcionista e poeta. Também editado no exterior. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris  Causa da UESC.

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