Cyro
de Mattos
Adelmo Oliveira nasceu em 13 de maio de 1934, na cidade de
Itabuna, sul da Bahia. Sua família constituída de retirantes da seca retornou
às origens no sertão da Bahia, na época da Segunda Guerra Mundial. Publicou: O
canto da hora indefinida (1960), O som dos cavalos selvagens (1971)
, Cântico para o Deus dos ventos e das águas (1987), Espelho das
horas (1991), Canto mínimo (2000), Poemas da vertigem (2005)
e Antologia (2012) na coleção Poesia Seleta, da Editora Mondrongo.
Em Cântico para o Deus dos ventos e das águas,
prossegue na jornada de andarilho da ilusão pelo “reino das estrelas eternas”,
como ele mesmo diz em um de seus versos. Retorna ao espaço da emoção e reflexão
ritmado com a palavra que expressa seu sentimento de mundo, testemunho de seu tempo e lugar.
Este livro está dividido em quatro partes: Silêncio & memória, Grito & silêncio,
O menino & o sonho, O homem & o sonho.
Com seus ventos e águas de eternas datas, esse cântico revela um poeta
que em seu navegar solitário assume o gosto lírico da tristeza. Dotado de
irmandade em “Pássaro”, humanismo
político em “As bodas da morte”, moralizante em “Bilhete a um poeta”, ingênuo
em “O menino & os pássaros”, luto e
dor em “Elegia dos deuses”, sagrado no
grave ritual de “Confissão”. A dicção se
compraz em guardar no tom pungente o que é fundamental moldado com a marca das
distâncias. Na flauta que toca a música de tristes claridades, a expressão
lírica filtra ausências por entre sombras, queixas de muitas solidões,
isolamento, cais, despedida. Longe de desesperar, afirme-se com o poeta no seu
ermo que “esse pranto e ponteio num poço de ondas e mágoas” redime,
conforta. Elucida no silêncio a rosa
quando nasce ade pesares na paisagem solitária.
É uma poesia que se vincula à linhagem de tradição universal
em seus elementos mais presentes: o verso, a rima, a imagem, o uso do soneto, o
subjetivismo. E, moderna em sua expressão lírica, sem os desvios técnicos de
certa vanguarda experimentalista. No ritual de dor, tristeza e solidão, conduz
sua mensagem por “caminhos de orvalho”, através de uma dicção confessional que
converte o poeta “a uma seita antiga para o culto de deuses invisíveis.”
O cântico que Adelmo Oliveira fere nessas águas de sal é
vazado com solidariedade, equilíbrio de ventos ofendidos no tempo interior,
doloroso e intenso, que corre no mundo. Sua música não é artificial. Há, em
notas agudas, o eu profundo que resiste
a um mundo despido de ternura, em ritmo veloz que pulsa no absurdo, impele a criatura para uma zona
ausente de esperança e compreensão.
É um cântico que comove, dado que nele submerso está o
sujeito como alguém triste, em armadura frágil nos limites do próprio casco,
com “um pé no chão e outro no espaço”, eis que emerge daquela região fincada de pureza, apesar de
perdida, na qual gravita de si mesma a
memória de cenas episódicas eternamente
nuas. A voz que escorre assim desse cântico mostra que na canção do viver e
morrer lirismo e o lado social do homem como ser gregário podem conviver de
mãos dadas, solidárias.
Pode-se dizer que em Cântico para o deus dos ventos e das
águas o poeta resgata o homem com mãos cheias de amor no apito sonoro das
extensões e fragmentos doloridos latejando na memória. Com voz subjetiva
eficaz, tom suficiente de queixa na vida que passa, suporta no seu ermo o mito
da inocência perdida. Navega nessas águas feridas, caminha nesses ventos
ofendidos, diz do eco de vozes oprimidas. Guarda na melodia de rude mar rumores
de madrugada, que se anuncia solitária e indefinida.
Na Antologia (2010), organizada por Gustavo
Felicíssimo, Coleção Poesia Seleta, da Mondrongo, a poesia de Adelmo Oliveira é
como uma estrela fixa que revela o mundo em órbita de ventos contrários.
Constata de que estamos enredados com o peso do enigma, representados no atrito
dos seres e as coisas, até mesmo quando
o cenário é a infância, que entre fissuras e rupturas forma fragmentos de uma
fruta que de súbito acaba com a idade
adulta. Simbolizada por questões e momentos agudos, essa poesia é algo que sempre está se fazendo e implica na
criação de nós mesmos. Ora como feridas, que, no desencontro da passagem do
tempo, deixam marcas profundas, próximas de verdades. Ora é a guerra que anula,
a paz que marcha na esperança para colher a felicidade.
Ocorrem cismas dentro da alma do poeta:
Vértice no tempo
De tanta dor
Meu pensamento
É só amor
Eis aqui uma poesia
que, também, veste-se de coragem e dignidade no espelho das horas. De ritmo que
agrada, conduz sem pressa quem a lê por
meio de discurso elegante, sem a dicção para esquivar-se
da vida na colheita das dores. Não teme os desafios, nunca recua em suas
constatações do que não agrada e oprime. Não se envergonha de mostrar
como dolorida é a memória do eu pronunciado, vertido por
meio de insinuações e motivações na lágrima feita de sal.
O mundo está dentro do poeta e o poeta dentro mundo. Essa é
a sua maneira de
circular na existência, como um “filho errante da poesia.“ Os últimos
versos de “Monólogo de uma rapsódia ligeira”, poema incluso na
antologia, deparo-me com a certeza da crença desse poeta, em voz viva:
Só confio nas
palavras
Ainda que
inutilmente revelem
A verdadeira face
da noite
da noite
Da grande
noite de nossa inexorável miséria
A poesia acompanha decididamente os passos do poeta no seu
ofendido ser-estar do mundo, enredado na ilusão sob o peso do enigma, condição
que lhe é cobrado pelo tempo na morte dos dias. Ao ler a poesia de Adelmo
Oliveira, escuto o poeta T.S. Eliot quando diz que o rio flui dentro de nós, o
mar cerca por todos os lados. Escuto no poeta baiano a sua voz que se abre com as palavras , soltas na
garganta como canto de pássaro, retirando
de dentro a fala, o grito, que
diz:
Sou um eco de silêncio do infinito
que perturba a razão deste enigma.
Neste enigma vestido no silêncio dos desertos, o poeta
medita o quanto o peito desesperado fala do homem habitado de sofrimento. As
palavras são nítidas, cortantes, constatam, servem às feridas que não se
fecham. Revelam sempre na metáfora do cérebro que tudo explode nos caminhos
onde a cruz está fincada e abalam ideias no pensamento com incansáveis cavalos em
irascível galope.
Jogo e drama são
movimentos de sondagem dessa poesia que pulsa em nervos e sentimentos, são
vísceras do mar salgado da vida. Ninguém sabe de onde vem nem para onde vai
este solitário coração. Com ele, no itinerário
de armazenadas solidões, salta o
pássaro riscado nas penas com pesares, desconfiado de sombras. Assim é
que o poeta acha o equilíbrio por entre
os medos e os vazios, delírios e sonhos.
E se vê como um intervalo que não chega a compreender, não consegue decifrar o
código cujas pontas estão atadas entre o primeiro vagido e o último
suspiro.
Da infância, o poeta lembra o Rio do Ouro que secou, os
caminhos que não se completaram, as veredas compartilhadas com o destino que
deságua em um leito de águas mortas, nesse súbito estuário escuro. De outras
vezes romântico ou assumido realista, toma emprestado a voz de figuras
fundamentais na crença de uma sociedade justa. Mostra-se engajado na poesia
social, solidária, de alto nível, humanista, suportando dores refeitas na
esperança do mundo melhor, seguindo na marcha de esperança.
O poeta libertário, em “Pequena canção do porta-estandarte”
distribui versos cantantes para comover e unir todas as mãos em uma só cantiga:
Não é sede de vingança
Não é ânsia de terror
Não é fuga ao desvario
Não é escape de angústia amorosa
Nem murmúrio de sentimentos dissolutos.
E já podemos concluir com ele que a liberdade, o bem mais
forte dos humanos, só é a força pura da vida, legítima, quando se escreve o seu
nome “como quem prega a paz e busca a
felicidade.”
No exercício do soneto, faturado com sinceridade, verdades,
dá mostras de certa morte que é puro fingimento. Vertido de vertigens e fantasia,
enuncia uma de suas estações prediletas a perdurar segredos e desejos do mito
que circula na rota da ilusão:
Aqui perto de mim, na minha vida
Meus olhos ficam cheios de poesia
- A estrela se debruça na janela
E a lua troca a noite pelo dia.
O poeta só emprega palavras que não desmentem o que sentiu e
colheu nas dores da vida. Em Adelmo Oliveira, o universo verbal do poema não é
feito com os vocábulos do dicionário, não se trata de ornamento que serve de
mero passatempo. Quer dar no auge dos conflitos um sentido mais puro da
vida. (Ensaio que participa do livro
Prosa e Poesia no Sul da Bahia, Editora Via Litterarum, Ibicaraí, Bahia, 2020)
Referência
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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Publicado por editoras europeias. Membro da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz (Bahia). Premiado no Brasil, México, Itália e Portugal.
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