A AMA-SECA
Artur Azevedo
O Romualdo,
marido de dona Eufêmia, era um rapaz sério, lá isso era, e tão incapaz de
cometer a mais leve infidelidade conjugal como de roubar o sino de São
Francisco de Paula; mas – vejam como o diabo as arma! Um dia dona Eufêmia foi
chamada, a toda a pressa, a Juiz de Fora, para ver o pai que estava gravemente
enfermo, e, como o Romualdo não podia naquela ocasião deixar a casa comercial
de que era guarda-livros (estavam a dar balanço), resignou-se a ver partir a
senhora, acompanhada pelos três meninos, o Zeca, o Cazuza, o Bibi, e a ama-seca
deste último, que era ainda de colo.
Foi a
primeira vez que Romualdo se separou da família. Custou-lhe muito, coitado, e
mais lhe custou quando, ao cabo de uma semana, dona Eufêmia lhe escreveu,
dizendo que o velho estava livre de perigo, mas a convalescença seria longa, e
o seu dever de filha era ficar junto dele um mês pelo menos.
O Romualdo
resignou-se. Que remédio!...
Durante os
primeiros tempos saía do escritório e metia-se em casa, mas no fim de alguns
dias entendeu que devia dar alguns passeios pelos arrabaldes, hoje este, amanhã
aquele. Era um meio, como outro qualquer, de iludir a saudade.
Uma noite
coube a vez ao Andaraí Grande. O Romualdo tomou o bonde do Leopoldo, e teve a fortuna ou a desgraça
de se sentar ao lado de mulatinha mais dengosa e bonita que ainda tentou um
marido, cuja mulher estivesse em Juiz de Fora.
Nessa
noite fatal a virtude de Romualdo deu em pantanas: tencionando ele ir até o fim
da linha, como fazia todas as noites, apeou-se na rua Mariz e Barros, ali pelas
alturas da travessa de São Salvador. A mulata havia se apeado algumas braças
antes.
E ele viu,
à luz de um lampião, o vulto dela saltitante e esquivo, e apressou o passo para
apanhá-la, o que conseguiu facilmente, porque, pelos modos, ela já contava com
isso.
- Boa-noite!
-
Boa-noite.
- Como se
chama?
-
Antonieta.
- Pode
dar-me uma palavra?
- Por que
não falou no bonde?
- Era
impossível... estava tanta gente... e estes elétricos são tão iluminados...
- Mas o
senhor bolinou que não foi graça! Vamos, diga: que deseja?
- Desejo
saber onde mora.
- Não
tenho casa minha; tou empregada numa família ali mais adiante, por siná que não
‘stou satisfeita, e ando procurando outra arrumação.
- Onde
podemos falar em particular?
- Não sei.
- Você sai
amanhã à noite?
- Amanhã
não, porque saí hoje, e não quero abusá.
- Então,
depois de amanhã?
- Pois
sim.
- Onde a
espero?
- Onde o
sinhô quis é.
- Na praça
Tiradentes, no ponto dos bondes. Às oito horas.
- Na porta
do armazém do Derby?
- Isso!
- Tá dito!
Inté depois d’amanhã às oito horas.
- Não
falte!
- Não
farto, não!
No dia
seguinte o Romualdo contou a sua aventura a um companheiro de escritório que
era useiro e vezeiro nessas cavalarias baixas, e o camarada levou a
condescendência ao ponto de confiar-lhe a chave de um ninho que tinha preparado
adrede para os contrabandos do amor.
Antonieta
foi pontual; à hora marcada lá estava à porta do Derby, com ares de quem
esperava o bonde.
O Romualdo
aproximou-se, fez um sinal, afastou-se, e ela o seguiu.
Dez dias
depois, estava ele arrependidíssimo da sua conquista fácil, e com remorsos de
haver enganado dona Eufêmia, aquela santa! Procurava agora meios e modos de se
ver livre da mulata, cuja prosódia era capaz de lançar água na fervura da mais
violenta paixão.
Vendo que não podia evitá-la, tomou o
Romualdo a deliberação de fugir-lhe, e uma noite deixou-a à porta do ninho,
esperando debalde por ele. Lembrou-se, mas era tarde, que havia prometido
dar-lhe um anel, justamente nessa noite.
- Diabo! – pensou
ele – Antonieta vai supor que lhe fugi por causa do anel.
Voltou,
afinal, dona Eufêmia de Juiz de Fora. Veio no trem da manhã, inesperadamente, e
já não encontrou o marido em casa.
Estava
furiosa, porque a ama-seca de Bibi deixara-se ficar na estação da Barra. Podia
ser que não fosse de propósito. O mais certo, porém, era o ter sido
descaminhada por um sujeito que vinha no trem a namorá-la desde Paraibuna.
Quando
dona Eufêmia contou isso ao marido, acrescentou indignada:
- Que
homem sem-vergonha!... Não podem ver uma mulata!...
O Romualdo
perturbou-se, mas disfarçou, perguntando:
- E agora?
É preciso anunciar! Não podemos ficar sem ama-seca!
- Já
mandei o Zeca por um anúncio no “Jornal do Brasil”.
No dia
seguinte, o Romualdo saiu muito cedo; ao voltar a casa, a primeira coisa que
perguntou à senhora foi:
- Então?
Já temos ama-seca?...
- Já; é
uma mulatinha bem jeitosa, mas tem cara de muito sapeca. Chama-se Antonieta.
- Hein?
Antonieta?
- Que
tens, homem?
Nada; não
tenho nada... É jeitosa?... Tem cara de sapeca?... Manda-a embora! Não serve!
Nem quero vê-la!...
- Ora
essa! Por quê? Olha, ela aí vem.
Antonieta
chegou, efetivamente, com o Bibi ao colo; mas o Romualdo tinha fechado os
olhos, dizendo consigo:
- Que
escândalo!... rebenta a bomba!... este diabo vai reclamar o anel!...
Mas como
nada ouvisse, o mísero abriu os olhos e – Oh! Milagre! – era outra
Antonieta!...
Ele pensou,
os leitores também pensaram que fosse a mesma; não era.
Decididamente há um Deus para os maridos que enganam as suas mulheres.
Artur Azevedo (Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo),
jornalista e teatrólogo, nasceu em São Luís, MA, em 7 de julho de 1855, e
faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 22 de outubro de 1908. Figurou, ao lado do
irmão Aluísio Azevedo, no grupo fundador da Academia Brasileira de Letras, onde
criou a cadeira nº 29, que tem como patrono Martins Pena.
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