Numa noite em que estávamos quatro ou cinco amigos reunidos em casa do Novais, vieram à baila os meus contos e não houve na assistência quem se não gabasse de saber casos que forneceriam magníficos assuntos para este gênero de literatura amena.
- Pode ser – disse eu – mas devo
confessar-lhes que até hoje não pude aproveitar para os meus trabalhos um único
assunto oferecido nessas condições. Os contos inventaram-se, o que não quer
dizer que não sejam também o produto do que se vê e observa na vida real, ou no
renovamento de qualquer anedota que corra mundo desde tempos imemoriais.
- Ora! Eu
sei a história de um jaó, que te poderia servir, disse-me o Novais, e vou
conta-la enquanto minha mulher apronta o chá!
- Conta, que
ele há de gostar – disse dona Emília, desaparecendo da sala.
- Vamos à
história do jaó! Exclamei, fingindo-me entusiasmado, para dar ânimo ao dono da
casa.
A cena
passa-se em Cataguases, no estado de Minas, ainda nos ominosos tempos da
monarquia, começou o Novais, acomodando-se numa poltrona.
Houve um
movimento geral de atenção, e todos nós aproximamos as nossas cadeiras.
- A um
quarto de légua da localidade, havia “um situante”, como lá dizem, homem já
maduro, honrado e trabalhador, que, tendo perdido a mulher, morava sozinho com
a filha.
Esta
chamava-se Mimi, e era um encanto, uma perfeição; morena, esbelta, cabelos
negros e ondeados, olhos de fogo, lábios rubros e magníficos dentes. De mais
não era estúpida nem de todo ignorante: fazia as quatro operações; cosia
admiravelmente e no governo da casa mostrava-se expedita e asseada.
Era agente
da estação da estrada de ferro um bonito rapaz de 25 anos, que tinha a paixão
da caça, e, nos lazeres do seu emprego, não fazia outra coisa senão caçar.
Um dia em
que as suas diligências cinegéticas o levaram lá às bandas do sítio do velho Serrano,
que assim se chamava o pai da moça, ele encontrou Mimi numa volta de estrada, e
ficou impressionadíssimo por aquela surpreendente formosura do campo.
Pelos modos,
o efeito foi recíproco: eles cumprimentaram-se, o que era muito natural, porque
na roça não se encontram duas pessoas que não se cumprimentem, embora não se conheçam;
mas sorriam um para o outro, e isso já não estava nos usos e costumes
indígenas.
Durante três
dias a fio houve novos encontros e novos sorrisos. O moço nunca mais caçou
noutro lugar.
Afinal,
chegaram à fala, e ele que talvez levasse más intenções, foi desarmado pela
candura e pela ingenuidade de Mimi.
Amaram-se,
amaram-se deveras; entretanto, aquelas entrevistas na estrada eram perigosas;
podia passar alguém...
- Ficaremos
à vontade – disse ela com uma adorável confiança no seu amado – à sombra de uma
caneleira que há nos fundos lá de casa. Entra-se por aquele atalho e vai-se dar
mesmo lá.
- E teu pai?
- Meu pai
está da outra banda, fazendo o roçado; só vai pros lados da caneleira uma vez
na vida e outra na morte. Estou sozinha em casa. Você dá um sinal, e eu vou ter
com você.
Qual há de
ser o sinal?
- Você é
caçador; deve saber piar.
-
Naturalmente! Pio macuco, inhambu, jaó...
- Jaó,
prefiro jaó, é triste, mas é bonito.
O namorado piou, para dar uma amostra da
sua habilidade; o pio não podia ser mais perfeito.
No dia
seguinte o velho Serrano sentiu-se um tanto indisposto e não quis sair de casa,
o que bastante contrariou Mimi.
- Hoje nada
de sol! – disse ele; - tenho a cabeça pesada, e nesta idade o sangue sobe com
facilidade. Ontem se não me engano, ouvi cantar um jaó, e tomei a coisa como
agouro, porque há muito tempo esse pássaro não aparecia por cá.
- Ora papai,
isso agora é tolice!
- Será, mas não vou ao roçado. Nada,
que teu avô não faz outro!
E,
dirigindo-se a um alpendrado, que ficava na parte superior da casa, o velho
Serrano tirou a parede a sua espingarda, dizendo:
- Pra não
ficar com as mãos vadias, vou limpar esta sujeira que está criando ferrugem.
E, depois de
descarregar a espingarda para o ar, o velho sentou-se num banco e começou a
limpá-la.
O tiro foi
um alívio para Mimi – em primeiro lugar, porque ouvindo-o, o rapaz saberia que
o velho estava em casa, e em segundo lugar, porque uma arma carregada na mão do
pai era um perigo iminente para o namorado.
Mas – Oh!
Contrariedade! – concluindo o trabalho, o velho foi buscar o polvarinho e
carregou de novo a espingarda.
No momento de
pendurá-la, ouviu o pio do jaó.
- Ouviste,
Mimi? – perguntou Serrano empalidecendo de súbito, com a arma ainda na mão;
ouviste?
- Não,
senhor; que foi?
- O jaó!
- Não ouvi
nada; vocem’cê enganou-se.
- Não! Estes
ouvidos de velho caçador não se enganam... E aquilo é agouro!...
- Que
agouro, que nada!
- Há dois
anos piou um jaó no sítio do João Bernardo... Lembras-te?!... e três dias
depois o João Bernardo esticou a canela...
-
Coincidência.
- Eu nunca
te quis dizer nada, mas quando tua mãe morreu, tinha piado um jaó na véspera,
ali mesmo, do lado da caneleira. É um pássaro da morte, pior que a coruja!
Palavras não
eram ditas, ouviu-se e novo o jaó.
Serrano
estremeceu dos pés à cabeça:
- Ouviste
agora? Vê, minha filha, vê como tenho as mãos frias! Vou matar aquele diabo!
- Ora,
papai, deixe o pobre jaó! Ele não é o que vocem’cê pensa!
Pois sim!
Aquele não há de cá voltar! Vá agourar lá pro inferno.
O velho ia sair, mas a filha, desesperada
agarrou-o pelo braço:
- Não! Não
faça isso, papai! Pelo bem que me quer!
E vendo que
o velho forcejava para desvencilhar-se, Mimi pôs-se a gritar com toda força dos
seus pulmões:
- Jaó! Jaó!
Vai te embora, que papai quer te matar!
- Espera que
ele te entenda?
E, com um
arremesso, o velho saltou para o terreiro e encaminhou-se para o lado da
caneleira.
Mimi
continuou a gritar:
- Jaó! Meu
jaózinho! Foge, foge que papai lá vai à tua procura para matar-te!...
O velho
voltou ao cabo de meia hora sem ter encontrado o pássaro.
- Que diabo,
menina! Parece que ele te entendeu...
E pendurou
tranquilamente a espingarda.
O Novais
calou-se.
- Está
terminado o conto? – perguntei depois de uma pausa.
- Está; não
o achas interessante?
- Não é mau,
mas falta-lhe a conclusão. Que fim levou o jaó?
- Aqui o
tens na tua presença, meu amigo; o jaó era eu.
- E a Mimi,
esta sua criada – acrescentou dona Emília, que voltava com a bandeja do chá.
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Artur Azevedo (Artur Nabantino Gonçalves de
Azevedo), jornalista e teatrólogo, nasceu em São Luís, MA, em 7 de julho de
1855, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 22 de outubro de 1908. Figurou, ao
lado do irmão Aluísio Azevedo, no grupo fundador da Academia Brasileira de
Letras, onde criou a cadeira nº 29, que tem como patrono Martins Pena.
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