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terça-feira, 1 de março de 2022

O JAÓ – Artur Azevedo

 


        Numa noite em que estávamos quatro ou cinco amigos reunidos em casa do Novais, vieram à baila os meus contos e não houve na assistência quem se não gabasse de saber casos que forneceriam magníficos assuntos para este gênero de literatura amena.

          - Pode ser – disse eu – mas devo confessar-lhes que até hoje não pude aproveitar para os meus trabalhos um único assunto oferecido nessas condições. Os contos inventaram-se, o que não quer dizer que não sejam também o produto do que se vê e observa na vida real, ou no renovamento de qualquer anedota que corra mundo desde tempos imemoriais.

          - Ora! Eu sei a história de um jaó, que te poderia servir, disse-me o Novais, e vou conta-la enquanto minha mulher apronta o chá!

          - Conta, que ele há de gostar – disse dona Emília, desaparecendo da sala.

          - Vamos à história do jaó! Exclamei, fingindo-me entusiasmado, para dar ânimo ao dono da casa.

          A cena passa-se em Cataguases, no estado de Minas, ainda nos ominosos tempos da monarquia, começou o Novais, acomodando-se numa poltrona.

          Houve um movimento geral de atenção, e todos nós aproximamos as nossas cadeiras.

          - A um quarto de légua da localidade, havia “um situante”, como lá dizem, homem já maduro, honrado e trabalhador, que, tendo perdido a mulher, morava sozinho com a filha.

          Esta chamava-se Mimi, e era um encanto, uma perfeição; morena, esbelta, cabelos negros e ondeados, olhos de fogo, lábios rubros e magníficos dentes. De mais não era estúpida nem de todo ignorante: fazia as quatro operações; cosia admiravelmente e no governo da casa mostrava-se expedita e asseada.

          Era agente da estação da estrada de ferro um bonito rapaz de 25 anos, que tinha a paixão da caça, e, nos lazeres do seu emprego, não fazia outra coisa senão caçar.

          Um dia em que as suas diligências cinegéticas o levaram lá às bandas do sítio do velho Serrano, que assim se chamava o pai da moça, ele encontrou Mimi numa volta de estrada, e ficou impressionadíssimo por aquela surpreendente formosura do campo.

          Pelos modos, o efeito foi recíproco: eles cumprimentaram-se, o que era muito natural, porque na roça não se encontram duas pessoas que não se cumprimentem, embora não se conheçam; mas sorriam um para o outro, e isso já não estava nos usos e costumes indígenas.

          Durante três dias a fio houve novos encontros e novos sorrisos. O moço nunca mais caçou noutro lugar.

          Afinal, chegaram à fala, e ele que talvez levasse más intenções, foi desarmado pela candura e pela ingenuidade de Mimi.

          Amaram-se, amaram-se deveras; entretanto, aquelas entrevistas na estrada eram perigosas; podia passar alguém...

          - Ficaremos à vontade – disse ela com uma adorável confiança no seu amado – à sombra de uma caneleira que há nos fundos lá de casa. Entra-se por aquele atalho e vai-se dar mesmo lá.

          - E teu pai?

          - Meu pai está da outra banda, fazendo o roçado; só vai pros lados da caneleira uma vez na vida e outra na morte. Estou sozinha em casa. Você dá um sinal, e eu vou ter com você.

          Qual há de ser o sinal?

          - Você é caçador; deve saber piar.

          - Naturalmente! Pio macuco, inhambu, jaó...

          - Jaó, prefiro jaó, é triste, mas é bonito.

          O namorado piou, para dar uma amostra da sua habilidade; o pio não podia ser mais perfeito.

         No dia seguinte o velho Serrano sentiu-se um tanto indisposto e não quis sair de casa, o que bastante contrariou Mimi.

          - Hoje nada de sol! – disse ele; - tenho a cabeça pesada, e nesta idade o sangue sobe com facilidade. Ontem se não me engano, ouvi cantar um jaó, e tomei a coisa como agouro, porque há muito tempo esse pássaro não aparecia por cá.

          - Ora papai, isso agora é tolice!

          - Será, mas não vou ao roçado. Nada, que teu avô não faz outro!

          E, dirigindo-se a um alpendrado, que ficava na parte superior da casa, o velho Serrano tirou a parede a sua espingarda, dizendo:

          - Pra não ficar com as mãos vadias, vou limpar esta sujeira que está criando ferrugem.

          E, depois de descarregar a espingarda para o ar, o velho sentou-se num banco e começou a limpá-la.

          O tiro foi um alívio para Mimi – em primeiro lugar, porque ouvindo-o, o rapaz saberia que o velho estava em casa, e em segundo lugar, porque uma arma carregada na mão do pai era um perigo iminente para o namorado.

          Mas – Oh! Contrariedade! – concluindo o trabalho, o velho foi buscar o polvarinho e carregou de novo a espingarda.

         No momento de pendurá-la, ouviu o pio do jaó.

          - Ouviste, Mimi? – perguntou Serrano empalidecendo de súbito, com a arma ainda na mão; ouviste?

          - Não, senhor; que foi?

          - O jaó!

          - Não ouvi nada; vocem’cê enganou-se.

          - Não! Estes ouvidos de velho caçador não se enganam... E aquilo é agouro!...

          - Que agouro, que nada!

          - Há dois anos piou um jaó no sítio do João Bernardo... Lembras-te?!... e três dias depois o João Bernardo esticou a canela...

          - Coincidência.

          - Eu nunca te quis dizer nada, mas quando tua mãe morreu, tinha piado um jaó na véspera, ali mesmo, do lado da caneleira. É um pássaro da morte, pior que a coruja!

          Palavras não eram ditas, ouviu-se e novo o jaó.

          Serrano estremeceu dos pés à cabeça:

          - Ouviste agora? Vê, minha filha, vê como tenho as mãos frias! Vou matar aquele diabo!

          - Ora, papai, deixe o pobre jaó! Ele não é o que vocem’cê pensa!

          Pois sim! Aquele não há de cá voltar! Vá agourar lá pro inferno.

          O velho ia sair, mas a filha, desesperada agarrou-o pelo braço:

          - Não! Não faça isso, papai! Pelo bem que me quer!

          E vendo que o velho forcejava para desvencilhar-se, Mimi pôs-se a gritar com toda força dos seus pulmões:

          - Jaó! Jaó! Vai te embora, que papai quer te matar!

          - Espera que ele te entenda?

          E, com um arremesso, o velho saltou para o terreiro e encaminhou-se para o lado da caneleira.

          Mimi continuou a gritar:

          - Jaó! Meu jaózinho! Foge, foge que papai lá vai à tua procura para matar-te!...

          O velho voltou ao cabo de meia hora sem ter encontrado o pássaro.

          - Que diabo, menina! Parece que ele te entendeu...

          E pendurou tranquilamente a espingarda.

         

          O Novais calou-se.

          - Está terminado o conto? – perguntei depois de uma pausa.

          - Está; não o achas interessante?

          - Não é mau, mas falta-lhe a conclusão. Que fim levou o jaó?

          - Aqui o tens na tua presença, meu amigo; o jaó era eu.

          - E a Mimi, esta sua criada – acrescentou dona Emília, que voltava com a bandeja do chá.

 

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Artur Azevedo (Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo), jornalista e teatrólogo, nasceu em São Luís, MA, em 7 de julho de 1855, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 22 de outubro de 1908. Figurou, ao lado do irmão Aluísio Azevedo, no grupo fundador da Academia Brasileira de Letras, onde criou a cadeira nº 29, que tem como patrono Martins Pena.

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