Não é precisamente um conto o que hoje vou escrever.
Voltou do
seu passeio a São Paulo o Guedes – o Guedes sabem? – o maior asneirão que o
sol cobre, aquele mesmo que respondeu aqui há tempos quando numa roda lhe
perguntaram se tinha filhos:
- Tenho
uma filha já adúltera.
- Adúltera?!
- Sim,
senhor, adúltera; vai fazer 17 anos.
- Adulta
quer o senhor dizer...
- Ou isso.
É uma boa menina; só tem um defeito: é muito luxuriosa.
-
Luxuriosa?!
- Sim,
senhor, luxuriosa: gosta muito de luxar.
- Ah!
- Mas lá
está minha mulher para lhe dar bons conselhos... sim, porque minha mulher é
muito sensual.
-
Sensual?!
- Sim,
senhor, sensual: tem muito bom senso.
Pois é como
lhe digo: tive o prazer de encontrar ontem esse precioso Guedes, cujas
asneiras, colecionadas, dariam um volume de trezentas páginas, ou mais.
Eu estava
num armarinho da rua do Ouvidor, onde entrara para cumprimentar a minha
espirituosa amiga dona Henriqueta, que andava, como sempre, fazendo compras,
enchendo-se de caixinhas e pequeninos embrulhos, adquiridos aqui e ali.
O Guedes,
mal me viu, correu a dar-me um abraço, dizendo:
- Li no “O
País” a notícia do seu aniversário...
E recuando
dois passos, tomou uma atitude solene, deixou cair as pálpebras, e acrescentou:
- Faço
votos para que você tenha um futuro tão brilhante como o que passou.
Agradeci
comovido essa manifestação de apreço envolvida num disparate, e apresentei o
Guedes à minha espirituosa amiga dona Henriqueta, que mordia os lábios para não
rir.
-
Apresento-lhe, minha senhora, o mais extraordinário reformador da língua
portuguesa: o Guedes, o grande Guedes, que acaba de chegar de São Paulo, onde
esteve a passeio.
- Era
tempo de fazer uma viagem! – explicou ele. – Foi a primeira vez que saí do Rio
de Janeiro.
- Eu
também não saí ainda dessa cidade senão para ir uma vez a Petrópolis e duas a
Niterói – disse dona Henriqueta.
- Vejo
então que a senhora é cortesã... – acudiu o Guedes curvando os lábios no mais
amável dos seus sorrisos.
-
Cortesã?!
- Cortesã,
sim... filha da Corte...
- Oh,
Guedes! – observei baixinho. – Pois você não vê que está dizendo uma
inconveniência?
- Tem
razão... Atualmente não se deve falar em Corte...
E emendou:
- Vejo
então que a senhora é capitalista federalista
Dona
Henriqueta desta vez riu-se a perder. É provável que ao leitor não aconteça o
mesmo. Paciência.
- Ó
Guedes! Vamos lá! Diga-me! Que impressões trouxe você de São Paulo?
- Muito boas! Aquilo é uma grande terra!
- Dizem
que há lá muita sociabilidade.
- Como?
- Muita
convivência...
- Isso
há... As famílias visitam-se... Os moços coabitam com as moças.
- Ora essa!
- Que
entende você por “coabitar”?
- É...
é...
- É uma
indecência... uma inconveniência... uma coisa que não se diz!...
O Guedes
inflamou-se:
- Está
você muito enganado... “Coabitar” é...
E voltando-se para um dos caixeiros do
armarinho:
- O senhor
tem aí um dicionário que me empreste?
- Pois
não?
E daí a
dois minutos o Guedes tinha nas mãos os dois volumes do Aulete.
- Muito
bem! – disse eu. – Procure “coabitar”.
Depois de
folhear em vão o dicionário durante um ror de tempo, o teimoso exclamou:
- Não dá!
Não dá! Vejam...
- Perdão:
você está procurando com u: deve ser com o!
- Tem
razão. Tem razão...Onde estava eu com a cabeça?
E o Guedes
pôs-se de novo a folhear o Aulete.
- Não dá!
Também não dá com o! Veja: de coa para coação! Não dá com u nem com o!
- Valha-o Deus, Guedes, valha-o Deus! Você está
procurando sem h? Dê cá o dicionário!
E com um
sorriso de triunfo mostrei ao Guedes a significação da palavra.
- Olhe, leia: "Coabitar, habitar, viver
conjuntamente”.
- Mas isso...
- Agora veja o que o Aulete acrescenta entre parênteses: “Diz-se particularmente de duas pessoas de diferente sexo”.
- Perdão!
– bradou Guedes furioso. – Perdão! Eu não disse particularmente, mas alto e bom
som, e só não me ouviu que não me quis ouvir!
E batendo
com a mão espalmada sobre o balcão:
- Eu não
sou homem que diga as coisas particularmente!
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Artur Azevedo (Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo),
jornalista e teatrólogo, nasceu em São Luís, MA, em 7 de julho de 1855, e
faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 22 de outubro de 1908. Figurou, ao lado do
irmão Aluísio Azevedo, no grupo fundador da Academia Brasileira de Letras, onde
criou a cadeira nº 29, que tem como patrono Martins Pena.
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