Artur Azevedo
Havia na
capital de uma das nossas províncias menos adiantadas certa panelinha de
gramáticos, sofrivelmente pedantes. Não se agitava questão de sintaxe, para
cuja solução não fossem tais senhores imediatamente consultados. Diziam as
coisas mais simples e rudimentares num tom pedantesco e dogmático, que não
deixava de produzir o seu efeito no espírito das massas boquiabertas.
Dessa
aluvião de grandes homens destacava-se o Dr. Praxedes, que almoçava, merendava,
jantava e ceava gramática portuguesa.
Esse ratão,
bacharel formado em Olinda, nos bons tempos, era chefe de seção da Secretaria
do Governo, e andava pelas ruas a fazer a análise lógica das tabuletas das
lojas e dos cartazes pregados nas esquinas. “Casa do Barateiro – sujeito: esta
casa; verbo, é; atributo, a casa; do barateiro, complemento restritivo.” O Dr.
Praxedes despedia um criado, se o infeliz, como a soubrette das
Femmes Savantes, cometia um erro de prosódia.
E quando
submetia os transeuntes incautos a um exame de regência gramatical?
Por exemplo:
encontrava na rua um menino, e este caía na asneira de perguntar muito
naturalmente:
- Sr. Dr.
Praxedes, como tem passado?
- Venha cá –
respondia ele agarrando o pequeno por um botão do casaco: - “Sr. Dr. Praxedes,
como tem passado?” Que oração é esta?
- Mas... é
que estou com muita pressa...
- Diga!
- É uma
oração interrogativa.
- Sujeito?
- Sr. Dr.
Praxedes.
- Verbo?
- Ter.
- Atributo?
- Passado.
- Bom. Pode
ir. Lembranças a seu pai.
E, com uma
ideia súbita, parando:
- Ah! Venha
cá! Venha cá! Lembranças a seu pai – que oração é esta?
- É uma
oração... uma oração imperativa.
- Bravo!
Sujeito?
- Está
oculto... é você... Você dê lembranças a seu pai.
- Muito bem!
Verbo?
- Dar.
- Atributo?
- Dador.
- Lembranças
é um complemento...?
- Objetivo.
- A seu
pai...?
- Terminativo.
- Muito bem.
Pode ir. Adeus.
Depois de
aposentado com trinta anos de serviço, o Dr. Praxedes recolheu-se ao interior da
província, escolhendo, para passar o resto dos seus gloriosos dias, a
cidadezinha de ***, seu berço natal. Aí advogava por muito empenho, continuando
a exercer a sua missão de oráculo em questões gramaticais.
Raramente
saía à rua, pois todo o tempo era pouco para estar em casa, respondendo às
numerosas consultas que lhe dirigiam da capital e de outros pontos da
província.
A
cidadezinha de *** dava-se ao luxo de uma folha hebdomadária, o “Progresso”,
propriedade do Clorindo Barreto, que acumulava as funções de diretor, redator,
compositor, revisor, paginador, impressor, distribuidor e cobrador.
Ninguém se
admire disso, porque o Barreto – justiça se lhe faça – dava mais uso à tesoura
do que a pena. O vigário, que tinha sempre a sua pilhéria aos domingos, disse
um dia que aquilo não era uma tesoura, mas um tesouro.
Entretanto,
se no escritório do “Progresso” a goma-arábica tinha mais extração que a tinta
de escrever, não se passava caso de vulto, dentro ou fora da localidade, que
não viesse fielmente narrado na folha.
Por exemplo:
“O Sr. Major
Hilarião Gouveia de Araújo acaba de receber a grata nova de que seu prezado
filho, o jovem Tancredo, acaba de concluir os seus preparatórios na Corte, e
vai matricular-se na Escola Politécnica da referida corte.
Cumprimentamos cheios de júbilo o Sr. Major Hilarião, que é um dos mais
prestimosos assinantes desde que fundou-se a nossa folha.”
Em fins de
maio de 1885, a notícia do falecimento de Victor Hugo, chegou à cidadezinha de
***, levada por um sujeito que saíra da capital justamente na ocasião em que o
telégrafo comunicara o infausto acontecimento.
O Barreto,
logo que soube da notícia, coçou a cabeça e murmurou:
- Diabo! Não
tenho jornais... Como hei de descalçar este par de botas? A notícia da morte de
Victor Hugo deve ser floreada, bem escrita, e não me sinto com forças para
desempenhar semelhante tarefa!
Todavia,
molhou a pena, que se parecia um tanto com a espada de certos generais, e
rabiscou: Victor Hugo.
Ao cabo de
duas horas de cogitação, o jornalista não escrevera nem mais uma linha...
Mas, oh!
Providência! Nesse momento passou pela porta da tipografia o sábio Dr.
Praxedes, a passos largos, medidos e solenes, e uma ideia iluminou o cérebro
vazio de Clorindo Barreto.
- Dr.
Praxedes! Dr. Praxedes! – exclamou ele. – Tenha vossa senhoria a bondade de
entrar por um momento. Preciso falar-lhe.
O Dr.
Praxedes empacou, voltou-se gravemente e, conquanto embirrasse com o Barreto,
por causa de seus constantes solecismos, entrou na tipografia.
- Que
deseja?
O relator do
Progresso referiu a notícia da morte do grande poeta, confessou o vergonhoso
embaraço em que se achava, e apelou para as luzes do Dr. Praxedes.
Esse, com um
sorriso de lisonjeado, sorriso que logo desapareceu, curvando-se-lhe os lábios
em sentido oposto, sentou-se à mesa com a gravidade de um juiz, tirou os
óculos, limpou-os com muito vagar, bifurcou-os no nariz, pediu uma pena nova,
experimentou-a na unha do polegar, dispôs sobre a mesa algumas tiras de papel,
cujas arestas aparou cuidadosamente com a tesoura, chupou a pena, molhou-a três
vezes no tinteiro infecundo, sacudiu-a outras tantas, e, afinal, escreveu:
“Falecimento. – Consta, por pessoa vinda de ***, ter falecido em Paris,
capital da França, o Sr. Victor Hugo, poeta insigne e autor de várias obras de
mérito, entre as quais um drama em verso, Mariquinhas Delorme (Marion
Delorme) e uma interessante novela intitulada Nossa Senhora de Paris
(Notre-Dame de Paris).
O ilustre
finado era conde e viúvo.
O seu
falecimento enluta a literatura da culta Europa.
Nossos
sinceros pêsames à sua estremecida família.”
O Dr.
Praxedes saiu da tipografia do “Progresso”, e continuou o seu caminho a passos
largos medidos e solenes.
Ia mais
satisfeito e cheio de si do que o próprio Sr. Victor Hugo quando escreveu a
última palavra de sua interessante novela.
O Barreto
ficou radiante e, examinando a tira de papel escrita pelo gramático, exclamou,
comovido pela admiração:
- Nem uma
emenda!
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Artur Azevedo (Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo), jornalista e teatrólogo, nasceu em São Luís, MA, em 7 de julho de 1855, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 22 de outubro de 1908. Figurou, ao lado do irmão Aluísio Azevedo, no grupo fundador da Academia Brasileira de Letras, onde criou a cadeira nº 29, que tem como patrono Martins Pena.
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