A Verdade sobre “GRANDE SERTÃO:
VEREDAS”, de Guimarães Rosa
Ivo Korytoswki
Escritor com duas obras premiadas pela UBE, tradutor
consagrado, lexicógrafo, filósofo pela UFRJ, pesquisador da história do Rio,
blogueiro e Youtuber. Pode ser contactado no Facebook.
Grande Sertão: Veredas é uma “vaca sagrada” da
literatura brasileira. Não gostar dessa obra do Rosa é o suprassumo do “culturalmente
incorreto”. O máximo que você pode dizer é que não está à altura do livro, não
está preparado ainda para ler o livro. O defeito não é do livro, é teu.
O livro tem qualidades enormes que não vou declinar aqui
porque já o foram sobejamente. Mas tem defeitos também. Quer saber a verdade
sobre Grande Sertão: Veredas? Então me acompanhe.
1) Vê-se de tudo em Grande Sertão: Veredas, uma
Ilíada brasileira, um pacto faustiano sertanejo, uma regressão à língua
primordial pré-Babel, menos o que a obra realmente é: uma grande “guerra
de quadrilhas” ou, mais exatamente, guerra entre bandos de jagunços que
percorrem os sertões das “Gerais” meio que sem destino com sede de luta e
vingança. “O senhor sabe o mais que é, de se navegar sertão num rumo sem
termo, amanhecendo cada manhã num pouso diferente, sem juízo de raiz?” (pág.
275 da 37. edição, da foto abaixo) “Sertão é o penal, criminal. Sertão é
onde o homem tem de ter a dura nuca e mão quadrada.” (pág. 92) Em meio a
toda essa violência desenfreada tropas do governo também metem a colher. Só que
guerra de quadrilha urbana tem um objetivo: conquistar território para vender
drogas para ganhar dinheiro. E essa guerra sem fim dos jagunços aparentemente
não tem objetivo concreto, ou se tem Rosa não deixa claro qual seja: é a guerra
pela guerra, as eternas vendetas.
2) Os personagens que travam essa guerra, por mais
pitorescos que se afigurem na criação artística de Rosa, são maus: matam
com prazer, estupram, invadem cidades e saqueiam o comércio, numa das cenas
mais revoltantes massacram cavalos só de maldade, tem cena de antropofagia (“o
corpudo não era bugio não, não achavam o rabo. Era homem humano” - pág.
43), é gente com culpa no cartório. “Jagunço – criatura paga para crimes,
impondo o sofrer no quieto arruado dos outros, matando e roupilhando” (pág.
191)
São todos maus, menos o protagonista/narrador. “Eu
Riobaldo, jagunço, homem de matar e morrer com a minha valentia.” (pág.
174) Esse é o protótipo de um arquétipo da literatura: o bom bandido. O
bandido filósofo, porque está preocupado com a questão da existência
de Deus e do diabo (como se a existência de Deus e do diabo
fosse a suprema questão filosófica). O bandido poeta (o discurso de Riobaldo
tem, sim, poeticidade). O jagunço que entrou na jagunçagem não por ser ruim,
mas pela força de um destino de tragédia grega (ἀνάγκη) que o empurrou para a
“vida de jagunço”. “Por que será que eu precisava de ir por adiante, com
Diadorim e os companheiros, atrás de sorte e morte, nestes Gerais meus? Destino
preso.” (pág. 171) O problema é que não existe “bandido bom” na vida real.
Só na literatura e numa ciência social descolada da realidade. (Como posso ser
tão tacanho a ponto de equiparar Riobaldo a um bandido? Dirão)
3) Uma das virtudes apontadas em Grande Sertão:
Veredas, aliás, a virtude cardeal, que impressionou o meio
intelectual da época do lançamento (segunda metade da década de 1950) e
continua impressionando até hoje, é a inovação, a criatividade linguística.
Segundo Alexei Bueno, “uma espécie de expressionismo linguístico onde
violentas deformações da base já muito requintada que é a expressão oral do
sertanejo brasileiro conseguiram atingir sínteses artísticas e emocionais
espantosas”. Não que a linguagem do sertanejo (ou de outros estratos da
população menos letrada) nunca tivesse sido reproduzida tal e qual. Já havia
sido, em diálogos.
Mas aqui não se trata só de diálogos entre personagens. Um
narrador conta a história, da primeira (“Nonada”) à última (“Travessia”) frase,
em uma linguagem supostamente de um sertanejo, livre das amarras da “norma
culta”. Que não é uma linguagem de um sertanejo comum, qualquer. É a linguagem
de um sertanejo idealizado, esclarecido, de pendores poéticos, inclinação
filosófica, que discorre “sabiamente” sobre o bem e o mal, Deus e o
diabo na terra do sol, em suma, um sertanejo criado pela imaginação
fertilíssima, pela genialidade do Rosa. No fundo é a linguagem do Rosa se ele,
homem urbano, diplomata, cultíssimo, fosse viver no meio sertanejo! Rosa é
louvado por ter revolucionado a língua. Revolucionou mesmo? A língua falada
pelos brasileiros mudou em decorrência da obra do Rosa? Por outro lado, se
alguém escrever um livro inteiro em miguxês/internetês, que é o calão dos
internautas, ou em gíria de traficante de morro carioca, tá ligado?, será
louvado por ter revolucionado a língua? E uma língua com séculos de tradição
literária carece de ser revolucionada? Não basta que evolua naturalmente?
4) A linguagem de Riobaldo, narrador de Grande
Sertão: Veredas, soa estranha para quem abre o livro pela primeira vez, mas se
você se esforçar e ultrapassar certo número de páginas, acaba se
acostumando: é o que dizem. Como se acostuma com a sintaxe & pontuação
esdrúxula do Saramago. Pois vou confessar uma coisa. No momento em que escrevo
estas linhas já ultrapassei a página 300 e ainda não me acostumei com a linguagem.
Digo mais: já enjoei dessa linguagem, tipo enjoo que se tem em navio depois de
vários dias em alto-mar. É assaz frustrante ler uma obra em que, vira e mexe,
você depara com construções léxicas que parecem não fazer sentido e onde as
palavras que você porventura não entende (porque você não tem na cabeça todas
as centenas de milhares de palavras da língua portuguesa) não constam
necessariamente do dicionário. Querem exemplos?
Agora, advai que aquietavam, no estatuto. Nanja, o senhor,
nessa sossegação, que se fie! O que fosse, eles podiam referver em
imediatidade, o banguelê, num zunir: que vespassem. (pág. 227)
Assim que, inimigo, persistia só inimigo, surunganga; mas
enxuto e comparado, contra-homem sem o desleixo de si. (pág. 317)
“É, eu vou com o senhor, e esse urucuiano Salústio vem
comigo, mas é na hora da situação... Aí, na hora horinha, estou junto perto,
para ver. A para ver como é, que será vai ser... O que será vai ser ou vai não
ser...” (pág. 306)
Os fatos passados obedecem à gente; os em vir, também. Só o
poder do presente é que é furiável? Não. Esse obedece igual – e é o que é. Isso
já aprendi. (pág. 301)
Vou ainda mais longe: há momentos em que o narrador parece
estar delirando. Senão vejamos.
Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é
uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito
maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o
total. Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente – o
que produz os ventos. (pág. 272)
5) E a fidedignidade histórica? Essas guerras de
jagunços sem nenhum motivo aparente ocorreram realmente em
Minas/Goiás? Sei que houve cangaço no Nordeste, sei que latifundiários
praticaram (ou até ainda praticam) grilagem de terras e até lançaram ou lançam
mão de jagunços para se apropriar de terrenos alheios, mas guerras entre bandos
de jagunços tipo guerras feudais medievais sem qualquer objetivo ocorreram em
Minas Gerais? (Aqui espero o socorro dos historiadores mineiros.) Aliás, Alexei
Bueno, em seu ensaio “Ribeiro, Rego, Rosa e Rocha: Afinidades Eletivas”
confirma essa minha sensação de irrealidade ao escrever que em Grande
Sertão: Vereda “sente-se uma organização social e militar muito mais
próxima do que conhecemos como cangaço, pela independência, sobretudo, dos seus
membros, do que de qualquer jaguncismo histórico daquele mais sonhado do que
real norte de Minas”.
6) Grande Sertão: Veredas não é a maior saga da
literatura brasileira do século XX. Quem detém o laurel, em minha modesta
opinião, é O Tempo e o Vento, do Érico Veríssimo, que conta,
romanceadamente, a história da formação do Rio Grande do Sul, desde os
primórdios até a era getuliana, com as rixas entre as famílias poderosas
proprietárias das terras, reconstituição dos gauchismos mas... sem
"revolucionar a língua", digamos assim.
· · ·
Na época do lançamento, Grande Sertão: Veredas foi
recebido com estupor, diferente de tudo que se escrevera antes. Reconheceram os
críticos as virtudes, mas também as dificuldades de compreensão da monumental
obra (e um dos críticos chegou a aludir aos “exageros” do estilo
roseano).
Assim, diz Maria Eugenia Celso, no Jornal do
Brasil de 28/7/1956:
O que acho mais extraordinário em “Grande Sertão: Veredas”,
o novo romance de Guimarães Rosa, é que, assim tão terrivelmente sertanejo no
linguajar, no ambiente e na trama passional dos episódios, tenha sido escrito
aqui por um diplomata num meio supercivilizado, para o qual aquela maneira de
falar não pode deixar de ser um tanto charadística. Verdadeiro “tour de force”,
a meu ver.
Escreve Manuel Bandeira em “Livros a Mancheias” no JB de
12 de agosto daquele mesmo ano:
Guimarães Rosa ouvi dizer que inventou uma língua nova, que
não é nem a portuguesa, nem a brasileira, nem a de Mário de Andrade.
Em mesa redonda sobre Rosa publicada no JB de 2
de setembro afirmou Sérgio Milliet:
Mas com “Grande Sertão: Veredas” temos o grito de
independência de nossa literatura. Depois deste livro será preciso reescrever a
gramática do português do Brasil. [...] “Grande Sertão: Veredas” é
sem dúvida alguma, o nosso grande acontecimento literário e linguístico do século.
Está para a possível língua brasileira como a poesia de Villon ao findar a
Idade Média.
Benedito Nunes, em “Primeira Notícia sobre Grande
Sertão: Veredas”, no JB de 10/2/1957, escreve:
“Grande Sertão: Veredas” ultrapassa o âmbito regional. No
drama do sertanejo ou do jagunço, irrompem os grandes problemas humanos – seja
a luta do homem contra a natureza que o estimula e o abate ao mesmo tempo, seja
o ímpeto do jagunço que se põe em armas para defender uma causa indefinível,
adota a lei da guerra menos pela rudeza de seu espírito do que pela necessidade
de viver e de realizar o seu destino.
Aliás, trata-se do único crítico que ousa apontar as deficiências
do estilo do autor:
Os trechos onde a linguagem decai, perdendo a sua eficiência
expressiva, revelam os defeitos da técnica que o romancista preferiu adotar
para ser fiel às situações vividas pelo personagem. Alguns desses defeitos são
cacoetes estilísticos decorrentes do uso, tantas vezes abusivo das
desarticulações sintáticas, contrações e elipses que, praticadas mecanicamente,
não possuem mais valor expressivo.
Josué Montello, em aula inaugural do Curso de Literatura
proferida em 28 de março de 1957 na Faculdade de Letras de Lisboa,
considerou Grande Sertão: Veredas “a mais arrojada aventura da nova
ficção brasileira. Guimarães Rosa é um renovador da língua como Aquilino
Ribeiro.”
Múcio Leão (JB, 1/5/1957) reconhece que a linguagem de Grande
Sertão: Veredas é dificílima, “uma espécie de língua nova,
inaceitável à maioria dos leitores, senão a todos eles. Eu mesmo, que terminei
por achar uma pura delícia esse Grande Sertão: Veredas, tive muita
dificuldade para conseguir lê-lo. [...] Resolvi lê-lo mais ou menos como se
fosse um livro escrito em outra língua, uma língua aproximada desta que falo.”
· · ·
Em suma, “o sertão é do tamanho do mundo” (pág.
60), e Grande Sertão: Veredas é um clássico, um monumento da nossa
literatura, inovador, impressionante, de tirar o fôlego, uma das três epopeias
da língua portuguesa (as outras, Os Lusíadas e Os Sertões),
segundo meu amigo Alexei, tudo isso admito, mas... não há nada de errado em
você, nem você precisa ficar com sentimento de culpa, caso não goste do livro
de Guimarães Rosa. Afinal, gosto se discute!
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Ivo Korytoswki é romancista premiado, tradutor com quase
duzentos romances traduzidos, autor de vários livros sobre o léxico brasileiro.
Jornalista e blogueiro famoso no Rio e São Paulo.
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