O menino que via a vida acontecer
Sônia Carvalho de Almeida Maron
O melhor mirante da cidade era o alto do
telhado, de onde se via a vida acontecer no céu
e na rua, por onde passavam personagens e
fatos importantes que iriam marcar a vida do
menino para sempre. (In: Cyro de Mattos,
contracapa do livro Histórias do mundo que
se foi, editora Saraiva, SP, em sexta edição,
Prêmio Adolfo Aizen da União Brasileira de
Escritores-RJ )
Aquele menino da Rua Ruy Barbosa tinha
mesmo um jeito diferente. Em nossa rua não existiam estranhos: do primeiro ao
último quarteirões, famílias trocavam sorrisos e cumprimentos, das crianças aos
mais velhos. E o menino passava para o colégio, muitas vezes em companhia do
irmão mais velho, compenetrado e sério, segurando a pasta com os livros como se
fossem uma carga preciosa. O irmão mais velho tinha o riso fácil e todas as
vezes que passava em frente à minha casa sorria de forma amistosa. Os pais do
menino gostavam de mim, eu tinha certeza, pois sabiam o meu nome e conheciam
meu pai.
Na vida
mansa da nossa rua todos eram conhecidos e a maioria amigos de verdade. As
famílias visitavam-se, sentavam-se em cadeiras colocadas nos passeios nos dias
de domingo, enquanto as crianças pulavam corda, jogavam bola de gude, pulavam
amarelinha e cantavam cantigas de roda nas noites de luar. O menino fazia parte
desse nosso mundo, mas eu sentia que participava de uma forma diferente: meus olhos de criança não sabiam definir se
era tímido ou se não queria participar de nossas brincadeiras por ter coisa
melhor para fazer. Eu desconfiava que fosse mais amigo dos livros do que de
nós.
E o tempo
foi passando. Os colégios da cidade não permitiam que os jovens sonhassem com
as carreiras mais nobres, não existiam faculdades. O menino e o irmão contaram
com o apoio do pai e seguiram para a capital identificada pelos mais velhos
como “Bahia”. Àquela época diziam com orgulho “meu filho foi estudar na Bahia”,
como se Itabuna fosse um lugar distante e fora do mapa do Estado. É que o
privilégio de estudar na capital era restrito aos mais abastados da classe
média. As famílias de milhares de arrobas de cacau enviavam os filhos para os
colégios e faculdades do Rio de Janeiro e São Paulo.
Não é que o pai do menino fosse um homem
arrogante e rico como muitos coronéis do cacau. Ao contrário. Era um homem
simples e trabalhador, sem diplomas e títulos, mas vislumbrava um futuro
grandioso para os filhos e, para ele, o estudo era o único caminho. Acertou em
cheio e ganhou um filho médico e o outro advogado.
O jovem
advogado iniciou, sem muito entusiasmo, o caminho das lides forenses. Gostava
mesmo era de escrever, escrever de verdade, coisa diferente das petições dos
processos cíveis e criminais. E enfrentou o desafio. A força que o conduzia
para a carreira sonhada era mais poderosa que o encanto dos embates da
advocacia. Determinado, passo a passo, conquistou o reconhecimento do mundo
literário do país conseguindo o que poucos alcançaram: Cyro de Mattos é um
escritor. Não um escritor qualquer. O itabunense que via “a rua acontecer no
céu e na terra, do alto do melhor mirante da cidade, o telhado de sua casa”,
como podemos ler na contracapa de um dos seus livros, Histórias do mundo que se
foi, coleciona prêmios e títulos como ficcionista, cronista, ensaísta, poeta e
demais variantes que pode assumir um verdadeiro escritor. Por último,
representará sua cidade na Academia de Letras da Bahia, na cadeira de nº 22,
que teve como membro fundador o mais conhecido e ilustre dos baianos, Ruy
Barbosa. Sem esquecer que leva em seu currículo os títulos de membro da Academia
de Letras de Ilhéus e membro fundador e idealizador da Academia de Letras de
Itabuna – ALITA.
Cyro de
Mattos é “prata de casa” da melhor qualidade. Todos sabem que seu currículo é
conquista de poucos e nossas academias são citadas primeiro por motivo puramente
sentimental. Em resumida amostragem,
registre-se o título de membro efetivo do Pen Clube do Brasil e Ordem do Mérito
da Bahia, no Grau de Comendador. Em suas incursões pelo mundo integrou a
delegação brasileira de Poetas da Universidade de Coimbra, em Portugal, e no
XVI Encontro de Poetas Iberoamericanos da Fundação Salamanca Cidade de Cultura
e Saberes, na Espanha. Foi agraciado com vários prêmios literários de
expressão, sendo autor de mais de cinquenta livros no Brasil e no exterior.
A Rua Ruy
Barbosa, na cidade de Itabuna, Bahia, Brasil, passou à imortalidade. A geração
de Cyro de Mattos, que é também a minha, festeja a conquista de um dos seus
meninos do Ginásio Divina Providência. Festejamos o amigo que desenvolveu a
admirável arte de observar o mundo com os olhos e o sentimento que só conhece
quem adquiriu o conhecimento guardado nos livros, sobre terras, homens e tempos
e serve de exemplo para a geração que se recusa a reconhecer a força mágica que
o livro empresta à nossa vida.
Sônia Carvalho de Almeida Maron é escritora, juíza de
Direito aposentada, ex-professora de Direito da UESC, uma das fundadoras da
Academia de Letras de Itabuna, foi presidente da instituição por dois mandatos.
Excelente obra literária Dra Sônia.nada melhor para homenagear um grande amigo e escritor da melhor estirpe que reviver com conhecimento da causa as suas origens e trazer ao público com clareza e sinceridade.Parabéns
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