Cyro de Mattos
Quando Assis Brasil estreou no romance com Beira rio, beira vida (1965), já era conhecido nos meios literários do Rio como crítico atuante de jornais e revistas importantes, além de ser visto como conceituado ensaísta do livro Faulkner e a nova técnica do romance. Editava o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB), do qual era colaborador assíduo com ensaios e artigos, no período compreendido entre 1956 a 1961. A atuação constante do ensaísta e crítico fizera com que durante largo tempo o escritor esquecesse a experiência existencial ligada às raízes na terra natal, importantes vivências que poderiam ser transformadas em ficção de alto nível.
Beira rio, beira vida rendeu-lhe o Prêmio Nacional WALMAP, o maior e mais prestigiado na época. Seu autor informava, em depoimento à imprensa, que nesse romance vigoroso deflagrava o processo estético da tetralogia piauiense, constituída a seguir com os livros A filha de meio quilo, O salto do cavalo cobridor e Pacamão. Ficava visível na escrita contundente que a tetralogia formava um dos mais vastos painéis de denúncia social do Brasil arcaico encravado no Piauí. Revelava um narrador seguro, que se apresentava com um projeto dotado de técnica inovadora, de rico conteúdo na denúncia social equilibrada, sem que fosse nas linhas traçadas da realidade impiedosa um autor panfletário, favorecendo o ideológico em prejuízo do estético.
Assis Brasil dedicou-se durante dez anos ao projeto da tetralogia, comprometido em projetar o que viveu na problemática social da terra natal em matéria ficcional, dotada de feição humanista com engajamento implícito na solidariedade social, tendo como vínculo de gravidade a dura existência de mulheres largadas ao azar, estagnadas na vida áspera sob o peso da vida. Criaturas que eram procuradas no cais do Parnaíba para suprir na cama carências dos marujos de água doce. Mulheres infelizes, fundadoras de uma dinastia em que o destino não dava trégua ao círculo inevitável de infelicidade, que lhes impingia o gosto da tristeza nos dias.
Com um ritmo veloz, centrado no drama, livre da sequência cronológica linear e da onisciência narrativa do romance convencional, em que o autor é o que sabe tudo sobre os personagens, imprimindo sua impressão digital na escrita como um controlador exclusivo do plano previsível do que deve acontecer no desenvolvimento do enredo, Beira rio, beira vida mostrava-se como resultado de uma imaginação audaciosa, técnica inovadora bem-sucedida, texto contemporâneo contrário aos tipos estereotipados na forma de narrar da ficção brasileira.
De curtos trechos, diálogos cerrados, convincentes espaços, usando silêncios imprescindíveis, ligeireza nos trechos. A narrativa de textura nervosa informava o necessário do que pretendia expressar na ideia tecida de sentimentos dolorosos, pensamentos com um ritmo nada agradável suscitando uma realidade dura, na teia armada de situações críticas. Com peculiaridades instigantes na forma romanesca de narrar, contemporâneos modos de apreender a lembrança tornada cena no detalhe, surgia esse romance arguto na denúncia social com uma estrutura plural tanto no significado como no significante. Vinha estruturado no texto coeso com felizes soluções, surpreendentes efeitos no movimento, que se aglutinavam na desenvoltura da trama impregnada de sofrimento. Impressionantes lances do enredo preenchiam-se de ideias nítidas, apropriada cadência fragmentada na entonação ausente de ternura, na rude verdade dos enleios e anseios, que assinalavam desabafos, choros e gritos.
De vozes solitárias ecoava o gesto perverso nas rações diárias, simbolizadas pela vida impotente diante da realidade cruel, sem brilho, fomentada na sina lastimável de mulheres que viviam no cais envelhecendo, no tempo igual, sem cura, onde tudo acontecia com o sofrimento. A intensidade conferida com clareza por cada recorte da existência lembra Calvino na proposta do milênio. Leveza e concisão na linguagem de fácil acesso, rapidez e precisão como ingredientes eficazes para o desdobramento do enredo.
Assis Brasil denuncia em Beira rio beira vida o drama de mulheres marginalizadas, suas relações agudas com a paisagem humana e física do rio, descendo na água barrenta, nas travessias com as canoas, as balsas, os navios-gaiolas, o delém, delém das sinetas; no deslize rotineiro das embarcações as cargas de arroz e algodão, transporte de gente simples, marinheiros que sempre vinham jantar com a mesma farda vistosa, branca, de botões dourados, o inseparável dolmã, o quepe azul, o talabarte brilhante.
Romance que
toca com sensibilidade apurada nas feridas sociais, faz emergir as verdades com
sensações de um tempo invariável onde habitam criaturas que sentem bater o
coração em dó e tristeza. Conta o drama de mulheres, que, de mãe à filha,
ocupam um destino estipulado pelo rio da vida, sem perspectiva de fuga,
desprotegidas na rotina sofrida.
“Vergonha, humilhação, por quanto tempo? Os mesmos atos, palavras – uma submissão completa. Assim, assim, nada mudava, todos sabiam e aceitavam, a vida era aquela, botar os passos no rumo e pronto. Eles nasceram na cidade para dar esmolas, elas nasceram no cais para receber.” (página 65, ano 1965).
Cremilda, Luiza, tempo de solidão, cenas caracterizadas na saga do destino marcado na dura profissão de humildes prostitutas do cais, mal a noite caía. E Mundoca, que não se interessava por homens, não esperaria em vão com a barriga cheia. Havia pegado o vício de fumar o cachimbo desde cedo. E Jessé e Nuno, personagens absorvidas pelos lances aventureiros da vida, que também compartilham dessa saga atravessada com tristeza e revolta pela imaginação audaciosa e técnica que renova a estrutura da narrativa brasileira.
Entra no conjunto das personagens desse romance de província uma protagonista passiva, que não fala, não ouve, vestida de pano feito com retalhos coloridos. A boneca Ceci recebe tratamento cuidadoso de Luíza, porque sabe como ela consola quando se busca apoio para sublimar lembranças de coisas amargas, remoídas com sentimentos que porejam nas pulsações de feridas abertas.
Assis Brasil serve da personagem Luíza para montar a história das prostitutas no cais do Parnaíba e ela própria, como figura central do drama, cria os outros personagens, fazendo com isso que a nervura da trama ganhe em autonomia e intensidade dramática. A mãe contava uma história quando estava bêbada. Ela ouviu da avó, se referindo a outra pessoa. Era a mais bonita mulher do cais, tinha casa própria, muitos vestidos e admiradores tantos. Um dia um moço da cidade, de família rica e conhecida, se apaixonou por ela, causando grande escândalo. De tanto repetir a história, terminou por ficar entendendo tudo. Um marinheiro amigado com a mulher matou o pobre rapaz. Diziam que o pai mandou matar o próprio filho e botar a culpa na mulher, que foi presa. Na cadeia, toda noite, quando a cidade dormia, gritava e chorava alto. Um dia descobriram que a mulher estava de barriga, passando os meses atormentada na cela. Gritava e chorava, maldizendo a filha que estava para ser parida, para que a cidade toda ouvisse o sofrimento e não dormisse. Do marinheiro assassino nunca se soube.
Nuno fora o primeiro e verdadeiro amor de Luíza, do encontro dos dois no camarote do navio-gaiola, quando ela era jovem, nascera Mundoca. Ele fora o primeiro a lhe pagar. A cédula de vinte mil réis era um presente para ela comprar o que mais quisesse, embora o que mais quisesse era que ele ficasse uma porção de tempo ou quando voltasse que fosse para sempre. Guardara o dinheiro sem jeito, não querendo que ele notasse sua tristeza. Guardara como um presente. Viriam outras cédulas, de outros homens, acompanhados com as sombras de Nuno. O tempo passava, ia conhecendo outros marinheiros, os retratos deles afixados na parede, como fizeram a bisavó, a avó, a mãe.
Em todos os traços, de um homem que gostava da aventura na vida, ela amara Nuno como nenhum outro. Os cabelos crespos, o rosto rústico de marinheiro, a pele tostada, a barba entranhada na pele, dando coloração azul no queixo. A boca diferente dos beiços de Jessé – firme, altiva nos dentes enfileirados, certos, alvos. Jessé sempre lhe pareceu com uma boca de velho, beiço caído, uns cacos estragados nas gengivas à mostra – a dentadura nova o fizera bicudo, cuspindo as palavras com uma feição grotesca e modo esquisito de dizer a vida.
Olhava um, que era Nuno, afogada na ilusão, e via o outro, Jessé, o amigo de brincadeiras na infância como livre expressão de inocência pura. Crescera ao seu lado como guia e protetor, nutrindo por ela com o tempo o sentimento do amor. Era correspondido com os risos de afeição, relações de uma amizade boa feita nas corridas pelo mato para saber quem chegava primeiro. Encontros com os passos despreocupados aconteciam pela rua quieta do cais, debaixo do sol que aquece, no sopro do vento que ameniza.
Mundoca era uma figura estranha, não tinha interesse por marinheiros, jamais conhecera Nuno, jamais esperaria de barriga grande, seguindo a sina de sofrer aquele sofrimento terno, “aquela saudade boa, o choro de uma infelicidade doce.” Perguntava à mãe quem era o pai, perguntava, perguntava, até que um dia soube dela a verdade num desabafo misturado de dor e lembrança. Ouviu que era o Nuno, ficando surpresa na revelação súbita, frustrada por saber que não justificava a ausência paterna durante tanto tempo. Ele nunca voltou para Luíza, depois de anos que vivera com o coração pulsando na ilusão da espera.
E Mundoca,
numa mistura de perversidade e tristeza, quando enterraram a velha, disse:
- Quantos não passaram por cima dessa pobre.
A acusação ressoava grave, como anotação desconfortável dirigida à mãe, à avó, à bisavó, a toda família que se reproduziu no ciclo da prostituição, nas submissões diárias da derrota, das amargas procedentes das aspirações sociais que não vingavam, o coito exasperado no armazém através daqueles homens conhecidos, com gestos conhecidos que sumiam uma vez consumados. Era tudo agora lembrado como notas do argumento solitário, desgastante ali mesmo na beira do cais. Na saga que perfurava com choros e gritos, o tempo era indiferente, não dava descanso aos cortes da dor. Os meses passavam em dó nas vidas vendidas para o dinheiro, envelhecendo sem cura, sem volta no tempo que tudo sabe, lambe o sal e escorre sua neutralidade perene na paisagem subvertida dos dias saudáveis, estes que confortam nessa hora leve do sono desfrutado pelos justos.
Assim se
externa numa dinâmica que aflige o romance Beira rio, beira vida, sem
forçar as notas. Tem sua ordem formal contemporânea, personalidade gritante que
transcende da vida nada fácil de mulheres humildes, amassadas nas dobras
opressivas do tempo, que não muda, pois na temperança do feio e belo ao mesmo
tempo dá permanência a uma criação artística realizada com sobras no acerto.
Procede da palavra insuspeita no texto intocável porque operado com habilidade
e talento. De tanto saber o lado ruim da
canção, da vida que ventava entre pobres mulheres com os sopros do não.
Leitura sugerida
ASSIS Brasil. Beira rio, beira vida, romance, edição O Cruzeiro, Rio, 1965.
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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Doutor Honoris
Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Possui prêmios literários
expressivos no Brasil e exterior. Membro efetivo da Academia de Letras da
Bahia.
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