O Final do § 4º
Apagaram-se
as luminárias, reconstituíram-se as famílias, tudo parecia reposto nos antigos
eixos. Reinava a ordem, a Câmara exercia outra vez o governo, sem nenhuma
pressão externa; o próprio presidente e o vereador Freitas tornaram aos seus
lugares. O barbeiro Porfírio, ensinado pelos acontecimentos, tendo
"provado tudo", como o poeta disse de Napoleão, e mais alguma coisa,
porque Napoleão não provou a Casa Verde, o barbeiro achou preferível a glória
obscura da navalha e da tesoura às calamidades brilhantes do poder; foi, é
certo, processado; mas a população da vila implorou a clemência de Sua
Majestade; daí o perdão. João Pina foi absolvido, atendendo-se a que ele
derrocara um rebelde. Os cronistas pensam que deste fato é que nasceu o nosso
adágio:—ladrão que furta ladrão tem cem anos de perdão; —adágio imoral, é
verdade, mas grandemente útil.
Não só
findaram as queixas contra o alienista, mas até nenhum ressentimento ficou dos
atos que ele praticara; acrescendo que os reclusos da Casa Verde, desde que ele
os declarara plenamente ajuizados, sentiram-se tomados de profundo
reconhecimento e férvido entusiasmo. Muitos entenderam que o alienista merecia
uma especial manifestação, e deram-lhe um baile, ao qual se seguiram outros
bailes e jantares. Dizem as crônicas que D. Evarista a princípio tivera ideia
de separar-se do consorte, mas a dor de perder a companhia de tão grande homem
venceu qualquer ressentimento de amor-próprio, e o casal veio a ser ainda mais
feliz do que antes.
Não menos
íntima ficou a amizade do alienista e do boticário. Este concluiu do ofício de
Simão Bacamarte que a prudência é a primeira das virtudes em tempos de
revolução e apreciou muito a magnanimidade do alienista que, ao dar-lhe a
liberdade, estendeu-lhe a mão de amigo velho.
— É um grande
homem, disse ele à mulher, referindo aquela circunstância.
Não é
preciso falar do albardeiro, do Costa, do Coelho, do Martim Brito e outros,
especialmente nomeados neste escrito; basta dizer que puderam exercer
livremente os seus hábitos anteriores. O próprio Martim Brito, recluso por um
discurso em que louvara enfaticamente D. Evarista, fez agora outro em honra do
insigne médico —"cujo altíssimo gênio, elevando as asas muito acima do sol,
deixou abaixo de si todos os demais espíritos da terra".
— Agradeço
as suas palavras, retorquiu-lhe o alienista, e ainda me não arrependo de o
haver restituído à liberdade.
Entretanto,
a Câmara que respondera ao ofício de Simão Bacamarte com a ressalva de que
oportunamente estatuiria em relação ao final do § 4°, tratou enfim de legislar
sobre ele. Foi adotada sem debate uma postura autorizando o alienista a
agasalhar na Casa Verde as pessoas que se achassem no gozo do perfeito
equilíbrio das faculdades mentais. E porque a experiência da Câmara tivesse
sido dolorosa, estabeleceu ela a cláusula de que a autorização era provisória,
limitada a um ano, para o fim de ser experimentada a nova teoria psicológica,
podendo a Câmara, antes mesmo daquele prazo, mandar fechar a Casa Verde, se a
isso fosse aconselhada por motivos de ordem pública. O vereador Freitas propôs
também a declaração de que em nenhum caso fossem os vereadores recolhidos ao
asilo dos alienados: cláusula que foi aceita, votada e incluída na postura,
apesar das reclamações do vereador Galvão. O argumento principal deste
magistrado é que a Câmara, legislando sobre uma experiência científica, não
podia excluir as pessoas 22 dos seus membros das consequências da lei; a
exceção era odiosa e ridícula. Mal proferira estas duas palavras, romperam os
vereadores em altos brados contra a audácia e insensatez do colega; este, porém,
ouviu-os e limitou-se a dizer que votava contra a exceção.
— A
vereança, concluiu ele, não nos dá nenhum poder especial nem nos elimina do
espírito humano.
Simão Bacamarte aceitou a postura com todas as restrições.
Quanto à exclusão dos vereadores, declarou que teria profundo sentimento se
fosse compelido a recolhê-los à Casa Verde; a cláusula, porém, era a melhor
prova de que eles não padeciam do perfeito equilíbrio das faculdades mentais.
Não acontecia o mesmo ao vereador Galvão, cujo acerto na objeção feita, e cuja
moderação na resposta dada às invectivas dos colegas mostravam da parte dele um
cérebro bem-organizado; pelo que rogava à Câmara que lho entregasse. A Câmara
sentindo-se ainda agravada pelo proceder do vereador Galvão, estimou o pedido
do alienista, e votou unanimemente a entrega.
Compreende-se
que, pela teoria nova, não bastava um fato ou um dito para recolher alguém à
Casa Verde; era preciso um longo exame, um vasto inquérito do passado e do
presente. O Padre Lopes, por exemplo, só foi capturado trinta dias depois da
postura, a mulher do boticário quarenta dias. A reclusão desta senhora encheu o
consorte de indignação. Crispim Soares saiu de casa espumando de cólera, e
declarando às pessoas a quem encontrava que ia arrancar as orelhas ao tirano.
Um sujeito, adversário do alienista, ouvindo na rua essa notícia, esqueceu os
motivos de dissidência, e correu à casa de Simão Bacamarte a participar-lhe o
perigo que corria. Simão Bacamarte mostrou-se grato ao procedimento do
adversário, e poucos minutos lhe bastaram para conhecer a retidão dos seus
sentimentos, a boa-fé, o respeito humano, a generosidade; apertou-lhe muito as
mãos, e recolheu-o à Casa Verde.
— Um caso
destes é raro, disse ele à mulher pasmada. Agora esperemos o nosso Crispim.
Crispim Soares
entrou. A dor vencera a raiva, o boticário não arrancou as orelhas ao
alienista. Este consolou o seu privado, assegurando-lhe que não era caso
perdido; talvez a mulher tivesse alguma lesão cerebral; ia examiná-la com muita
atenção; mas antes disso não podia deixá-la na rua. E, parecendo-lhe vantajoso
reuni-los, porque a astúcia e velhacaria do marido poderiam de certo modo curar
a beleza moral que ele descobrira na esposa, disse Simão Bacamarte:
— O senhor
trabalhará durante o dia na botica, mas almoçará e jantará com sua mulher, e cá
passará as noites, e os domingos e dias santos.
A proposta
colocou o pobre boticário na situação do asno de Buridan. Queria viver com a
mulher, mas temia voltar à Casa Verde; e nessa luta esteve algum tempo, até que
D. Evarista o tirou da dificuldade, prometendo que se incumbiria de ver a amiga
e transmitiria os recados de um para outro. Crispim Soares beijou-lhe as mãos
agradecido. Este último rasgo de egoísmo pusilânime pareceu sublime ao
alienista.
Ao cabo de
cinco meses estavam alojadas umas dezoito pessoas; mas Simão Bacamarte não
afrouxava; ia de rua em rua, de casa em casa, espreitando, interrogando,
estudando; e quando colhia um enfermo, levava-o com a mesma alegria com que
outrora os arrebanhava às dúzias. Essa mesma desproporção confirmava a teoria
nova; achara-se enfim a verdadeira patologia cerebral. Um dia, conseguiu meter
na Casa Verde o juiz de fora; mas procedia com tanto escrúpulo que o não fez
senão depois de estudar minuciosamente todos os seus atos, e interrogar os
principais da vila. Mais de uma vez esteve prestes a recolher pessoas
perfeitamente desequilibradas; foi o que se deu com um advogado, em quem
reconheceu um tal conjunto de qualidades morais e mentais que era perigoso
deixá-lo na rua. Mandou prendê-lo; mas o agente, desconfiado, pediu-lhe para
fazer uma experiência; foi ter com um compadre, demandado por um testamento
falso, e deu-lhe de conselho que tomasse por advogado o Salustiano; era o nome
da pessoa em questão.
— Então
parece-lhe...?
— Sem
dúvida: vá, confesse tudo, a verdade inteira, seja qual for, e confie-lhe a
causa.
O homem foi
ter com o advogado, confessou ter falsificado o testamento, e acabou pedindo
que lhe tomasse a causa. Não se negou o advogado; estudou os papéis, arrazoou
longamente, e provou a todas as luzes que o testamento era mais que verdadeiro.
A inocência do réu foi solenemente proclamada pelo juiz e a herança passou-lhe
às mãos. O distinto jurisconsulto deveu a esta experiência a liberdade. Mas
nada escapa a um espírito original e penetrante. Simão Bacamarte, que desde
algum tempo notava o zelo, a sagacidade, a paciência, a moderação daquele
agente, reconheceu a habilidade e o tino com que ele levara a cabo uma
experiência tão melindrosa e complicada, e determinou recolhê-lo imediatamente
à Casa Verde; deu-lhe, todavia, um dos melhores cubículos.
Os alienados
foram alojados por classes. Fez-se uma galeria de modestos; isto é, os loucos
em quem predominava esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de
verídicos, outra de símplices, outra de leais, outra de magnânimos, outra de
sagazes, outra de sinceros, etc. Naturalmente, as famílias e os amigos dos
reclusos bradavam contra a teoria; e alguns tentaram compelir a Câmara a cassar
a licença. A Câmara, porém, não esquecera a linguagem do vereador Galvão, e, se
cassasse a licença, vê-lo-ia na rua e restituído ao lugar; pelo que, recusou.
Simão Bacamarte oficiou aos vereadores, não agradecendo, mas felicitando-os por
esse ato de vingança pessoal.
Desenganados
da legalidade, alguns principais da vila recorreram secretamente ao barbeiro
Porfírio e afiançaram-lhe todo o apoio de gente, de dinheiro e influência na
corte, se ele se pusesse à testa de outro movimento contra a Câmara e o
alienista. O barbeiro respondeu-lhes que não; que a ambição o levara da
primeira vez a transgredir as leis, mas que ele se emendara, reconhecendo o
erro próprio e a pouca consistência da opinião dos seus mesmos sequazes; que a
Câmara entendera autorizar a nova experiência do alienista, por um ano:
cumpria, ou esperar o fim do prazo, ou requerer ao vice-rei, caso a mesma
Câmara rejeitasse o pedido. Jamais aconselharia o emprego de um recurso que ele
viu falhar em suas mãos e isso a troco de mortes e ferimentos que seriam o seu
eterno remorso.
— O que é
que me está dizendo? perguntou o alienista quando um agente secreto lhe contou
a conversação do barbeiro com os principais da vila.
Dois dias
depois o barbeiro era recolhido à Casa Verde.
— Preso por
ter cão, preso por não ter cão! exclamou o infeliz.
Chegou o fim do prazo, a Câmara autorizou um prazo
suplementar de seis meses para ensaio dos meios terapêuticos. O desfecho deste
episódio da crônica itaguaiense é de tal ordem e tão inesperado, que merecia nada
menos de dez capítulos de exposição; mas contento-me com um, que será o remate
da narrativa, e um dos mais belos exemplos de convicção científica e abnegação
humana.
Fonte:
MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro
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Machado de Assis (Joaquim Maria Machado de Assis),
jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo, nasceu no Rio
de Janeiro, RJ, em 21 de junho de 1839, e faleceu também no Rio de Janeiro, em
29 de setembro de 1908. É o fundador da cadeira nº. 23 da Academia Brasileira
de Letras.
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