O Grafiteiro Poeta
Cyro de Mattos
Ultrapassada
a fase criativa sob o domínio da inspiração e da transpiração, um dia o autor
imagina que o primeiro livro está pronto para ser editado. Vai ser útil ao
outro na leitura do mundo. Ainda não sabe como é complicado publicar um livro
por editor no circuito nacional, principalmente quando se trata de poesia. Com
o mineiro Ney Mourão não foi diferente. Durante vinte anos, o poeta de Notas
dispersas pelas paredes vinha batalhando a publicação de seu primeiro livro.
Chegou a ter uma ideia desesperadora nesse desejo de vê-lo finalmente editado.
Começou a grafitar poemas nos muros da cidade.
Assinava-se “poeta à procura de editor”. Ante
o espanto de alguns e indiferença de muitos, grafitou cerca de duzentos poemas.
Andou quilômetros, em três anos, a pé e de ônibus. Cobriu quase todos os
bairros da cidade. Várias vezes foi preso e humilhado. Serviu como tema de
redação nas escolas. Foi dado como morto. Souberam que o poeta estava vivo. Foi
entrevistado e virou notícia na mídia. Mas nada de encontrar até então o editor
de seu livro de estreia.
Em seu
destino de ser poeta, com a marca da vida e do sonho nos muros, nunca desistia.
Fazia, no itinerário das madrugadas de um homem só, que Belo Horizonte
amanhecesse riscada de versos comoventes. Como estes do conhecido poemeto
“Lampejo”: “Apague/a rua/que a lua/tá linda!”. Ou ainda estes de “Light”, de
conotação surrealista: “Às vezes / de tão feliz/ ela acorda/ e
sai por aí/ a t r o p e l a n d o b o r b o l e t a s”. Ou também nestes de
“mercadolivrepontocom”: “Troco/ um apito de fábrica/por um canto de pássaro”.
Entre tantos poeminhas, que lembram o haicai, pela síntese construtiva,
intencionalidade de grande beleza imagética, não posso deixar de citar estes
versos primorosos de “Litúrgico”: “Grafite de Deus/é arco-íris/ no horizonte!”.
Em sua
composição técnica e estética, como numa peça sinfônica, o conjunto destas
gritantes Notas dispersas pelas paredes reúne poemas curtos na maioria das
vezes. Acordes no elétrico emocional do espírito para iluminar o ar. Repercutir
nas ruas e invadir as casas. Coexistem, em sua partitura musical, como
elementos constituintes do discurso terno quase sem o liame entre o poeta e o
leitor, leia-se ouvinte, eliminando-se o que se considera ser tão-somente um
formalismo desnecessário, na esperança de aumentar em suas conexões sensoriais
o poder emocional que emerge em cada verso.
Mas esse mineiro criador de uma poesia nas paredes e tapumes
também se sai bem quando escreve o poema com desdobramento da razão emotiva.
Nesse particular, anotem como fatura exemplar do eu lírico os textos
denominados “Inventário”, “Poema Musical para Roer as Unhas” e “Indo”. Neles o
poeta não pretende explicar a vida, o que para o poeta Drummond, o trivial
lírico de Itabira, é inexplicável. Sob aspectos pungentes, transmite a beleza
inevitável da poesia na vida, também inexplicável, em momentos de chuva,
lágrima e solidão colados em nossa condição humana, nestes agudos ritos de
passagem no sempre.
Trata-se
de uma poesia de captação fácil, como talvez deva ser nos tempos atuais de
velocidade, como quer Calvino. Seu discurso articula-se com rapidez para ser
ouvido pelo outro mais o mundo, seduz com a enunciação sensitiva de seu
conteúdo. O leitor vai encontrar nessas estridentes Notas dispersas pelas
paredes o andamento da beleza com motivações múltiplas no exercício da
vida.
Nos tempos
de hoje, em cujo ritmo uma sociedade pós-industrial impele-se pela automação,
pela massificação e pelo consumo, vale a pena tomar conhecimento da estreia
desse poeta mineiro. Sua voz de grafiteiro poeta lateja emoções lindas. Em
nervura e cumplicidade de palavras polivalentes, mostra o quanto o homem tem de
grandeza em sua consciência grafitada com razão e emoção.
Cyro de Mattos é escritor e poeta. Membro Titular da Academia de Letras da Bahia e do Pen Clube do Brasil. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz.
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário