A Restauração
Nisto entrou
na vila uma força mandada pelo vice-rei, e restabeleceu a ordem. O alienista
exigiu desde logo a entrega do barbeiro Porfírio e bem assim a de uns cinquenta
e tantos indivíduos, que declarou mentecaptos; e não só lhe deram esses como
afiançaram entregar-lhe mais dezenove sequazes do barbeiro, que convalesciam
das feridas apanhadas na primeira rebelião.
Este ponto
da crise de Itaguaí marca também o grau máximo da influência de Simão
Bacamarte. Tudo quanto quis, deu-se-lhe; e uma das mais vivas provas do poder
do ilustre médico achamo-la na prontidão com que os vereadores, restituídos a
seus lugares, consentiram em que Sebastião Freitas também fosse recolhido ao
hospício. O alienista, sabendo da extraordinária inconsistência das opiniões
desse vereador, entendeu que era um caso patológico, e pediu-o. A mesma coisa
aconteceu ao boticário. O alienista, desde que lhe falaram da momentânea adesão
de Crispim Soares à rebelião dos Canjicas, comparou-a à aprovação que sempre
recebera dele, ainda na véspera, e mandou capturá-lo. Crispim Soares não negou
o fato, mas explicou-o dizendo que cedera a um movimento de terror, ao ver a
rebelião triunfante, e deu como prova a ausência de nenhum outro ato seu,
acrescentando que voltara logo à cama, doente. Simão Bacamarte não o
contrariou; disse, porém, aos circunstantes que o terror também é pai da
loucura, e que o caso de Crispim Soares lhe parecia dos mais caracterizados.
Mas a prova
mais evidente da influência de Simão Bacamarte foi a docilidade com que a
Câmara lhe entregou o próprio presidente. Este digno magistrado tinha
declarado, em plena sessão, que não se contentava, para lavá-la da afronta dos
Canjicas, com menos de trinta almudes de sangue; palavra que chegou aos ouvidos
do alienista por boca do secretário da Câmara, entusiasmado de tamanha energia.
Simão Bacamarte começou por meter o secretário na Casa Verde, e foi dali à
Câmara, à qual declarou que o presidente estava padecendo da "demência dos
touros", um gênero que ele pretendia estudar, com grande vantagem para os
povos. A Câmara a princípio hesitou, mas acabou cedendo.
Daí em diante foi uma coleta desenfreada.
Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples mentira do mundo, ainda
daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo metido na
Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de
charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem
todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém
escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava
as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural e as
segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo, ia do mesmo modo para a
Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completa sanidade
mental. Alguns cronistas creem que Simão Bacamarte nem sempre procedia com
lisura, e citam em abono da afirmação (que não sei se pode ser aceita) o fato
de ter alcançado da Câmara uma postura autorizando o uso de um anel de prata no
dedo polegar da mão esquerda, a toda a pessoa que, sem outra prova documental
ou tradicional, declarasse ter nas veias duas ou três onças de sangue godo.
Dizem esses cronistas que o fim secreto da insinuação à Câmara foi enriquecer
um ourives, amigo e compadre dele; mas, conquanto seja certo que o ourives viu
prosperar o negócio depois da nova ordenação municipal, não o é menos que essa
postura deu à Casa Verde uma multidão de inquilinos; pelo que, não se pode
definir, sem temeridade, o verdadeiro fim do ilustre médico. Quanto à razão
determinativa da captura e aposentação na Casa Verde de todos quantos usaram do
anel, é um dos pontos mais obscuros da história de Itaguaí; a opinião mais
verossímil é que eles foram recolhidos por andarem a gesticular, à toa, nas
ruas, em casa, na igreja. Ninguém ignora que os doidos gesticulam muito. Em
todo caso, é uma simples conjetura; de positivo, nada há.
— Onde é que
este homem vai parar? diziam os principais da terra. Ah! se nós tivéssemos
apoiado os Canjicas...
Um dia de
manhã — dia em que a Câmara devia dar um grande baile, — a vila inteira ficou
abalada com a notícia de que a própria esposa do alienista fora metida na Casa
Verde. Ninguém acreditou; devia ser invenção de algum gaiato. E não era: era a
verdade pura. Dona Evarista fora recolhida às duas horas da noite. O Padre
Lopes correu ao alienista e interrogou-o discretamente acerca do fato.
—Já há algum
tempo que eu desconfiava, disse gravemente o marido. A modéstia com que ela
vivera em ambos os matrimônios não podia conciliar-se com o furor das sedas,
veludos, rendas e pedras preciosas que manifestou, logo que voltou do Rio de
Janeiro. Desde então comecei a observá-la. Suas conversas eram todas sobre
esses objetos; se eu lhe falava das antigas cortes, inquiria logo da forma dos
vestidos das damas; se uma senhora a visitava na minha ausência, antes de me
dizer o objeto da visita, descrevia-me o trajo, aprovando umas coisas e
censurando outras. Um dia, creio que Vossa Reverendíssima há de lembrar-se,
propôs-se a fazer anualmente um vestido para a imagem de Nossa Senhora da
Matriz. Tudo isto eram sintomas graves; esta noite, porém, declarou-se a total
demência. Tinha escolhido, preparado, enfeitado o vestuário que levaria ao
baile da Câmara Municipal; só hesitava entre um colar de granada e outro de
safira. Anteontem perguntou-me qual deles levaria; respondi-lhe que um ou outro
lhe ficava bem. Ontem repetiu a pergunta ao almoço; pouco depois de jantar fui
achá-la calada e pensativa. — Que tem? perguntei-lhe. — Queria levar o colar de
granada, mas acho o de safira tão bonito! — Pois leve o de safira. — Ah! mas onde fica o de granada? — Enfim,
passou a tarde sem novidade. Ceamos, e deitamo-nos. Alta noite, seria hora e
meia, acordo e não a vejo; levanto-me, vou ao quarto de vestir, acho-a diante
dos dois colares, ensaiando-os ao espelho, ora um, ora outro. Era evidente a demência;
recolhi-a logo.
O Padre
Lopes não se satisfez com a resposta, mas não objetou nada. O alienista, porém,
percebeu e explicou-lhe que o caso de D. Evarista era de "mania
sumptuaria", não incurável, e em todo caso digno de estudo.
— Conto
pô-la boa dentro de seis semanas, concluiu ele.
E a
abnegação do ilustre médico deu-lhe grande realce. Conjeturas, invenções,
desconfianças, tudo caiu por terra desde que ele não duvidou recolher à Casa
Verde a própria mulher, a quem amava com todas as forças da alma. Ninguém mais
tinha o direito de resistir-lhe — menos ainda o de atribuir-lhe intuitos alheios
à ciência.
Era um
grande homem austero, Hipócrates forrado de Catão.
Fonte:
MINISTÉRIO DA CULTURA
Fundação Biblioteca Nacional
Departamento Nacional do Livro
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Machado de Assis (Joaquim Maria
Machado de Assis), jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e
teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 21 de junho de 1839, e faleceu
também no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1908. É o fundador da cadeira
nº. 23 da Academia Brasileira de Letras.
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