Circunstâncias de Joaci Goes
Cyro de Mattos
Houve quem observasse que a discussão sobre o tema o
intelectual e o homem pragmático nada oferece de produtivo, daí ficar relegada
ao plano teórico superado. Contudo, não é tarefa simples estabelecer a noção
sobre os limites entre os dois agentes, fazer o esclarecimento do que é ser
intelectual, pensador da vida, e o sujeito usuário da práxis imediata, que vê o
mundo pelas dimensões concretas das necessidades materiais.
Quando um homem nasce, se vê numa circunstância concreta, na
qual tem de viver como um ser social, atravessar pontes para construir uma de
suas dimensões, por consequência histórica. Como vínculo de gravidade, está
conectado a um aqui e um agora em que lhe coube viver. Por ser uma combinação
de valores, sua historicidade é um modo de submissão a ser isto ou aquilo, pois
viver é estar numa circunstância crítica e nela fazer determinadas coisas com
exclusão de todas as outras.
O homem pode ser encontrado com uma personalidade versátil
no seu estar no mundo, atuar como pensador da vida e ser o agente que dá
importância aos valores materiais. É possível vê-lo no horizonte histórico do
viver e no fundo pessoal da vocação, que tende para a vida pragmática. É com a
vocação que incide na afirmação e faz da vida humana individual um acréscimo
importantíssimo do destino como ser gregário, usuário do pensamento e do
sentimento, atributos que são pertencentes a ele mesmo.
Essas considerações vêm à mente quando lembro de companheiros de minha geração, que se destacaram com seus atributos pessoais na escala da vida e, entre eles, o moço Joaci Goes, que conheci no Colégio da Bahia (Central), nos idos de 1955. Cursávamos o clássico, era um ano mais adiantado do que ele. Às vezes encontrava com o moço na biblioteca do colégio, ele com os olhos mergulhados sobre algum livro que tratasse do conhecimento humano cujo autor e tema lhe chamassem a atenção. Em outro momento, no papo fraternal, era para me aconselhar que não deixasse de ler O Espirito das Leis, de Montesquieu, um dos livros fundamentais do Iluminismo, básico para a inspiração do estado moderno com os três poderes independentes, e O Contrato Social, de Rousseau, o livro que inspirou a Revolução Francesa e motivou o célebre lema da igualdade, fraternidade e liberdade. E ainda mais: A Vigésima Quinta Hora, de Constantin Virguil Gheorghiu, o romancista romeno que nos mostrava a expressão da dor com os horrores da guerra, afundando o homem no abismo da razão e na negação absurda do sentimento da liberdade.
Tempos depois encontraria o intelectual inquieto na Faculdade
de Direito da Universidade Federal da Bahia. Ele sempre com aquele espírito
animado para discutir com os colegas sobre temas de filosofia, sociologia e
literatura. Com o instrumental que conseguiu armazenar sobre diversos campos do
conhecimento, só poderia se destacar como um universitário virtuoso, dotado de
ideias, conhecedor da problemática social do indivíduo e de outras linguagens
que ensinam a leitura do mundo em termos axiológicos.
Compareceu com artigos lúcidos às páginas da revista
Ângulos, do Centro Acadêmico Rui Barbosa, cujo editor era o acadêmico João
Eurico Matta, um mito entre os universitários. A revista tinha como
colaboradores o professor Antônio Luís Machado Neto, o cineasta Glauber Rocha,
os poetas João Carlos Teixeira Gomes e Florisvaldo Mattos, o pensador marxista
Carlos Nelson Coutinho, o crítico literário Davi Sales, os ficcionistas João
Ubaldo Ribeiro e Sônia Coutinho, o ativista político Nemésio Sales e tantos
outros.
Diplomado na turma de 1962, da gloriosa Faculdade de Direito
da UFBA, com o canudo na bagagem e o anel no dedo, regressei ao interior para
exercer a profissão de advogado. Em minha terra natal, seguia alguns
companheiros de geração em Salvador, que tomaram rumos diversos. De Joaci soube
que se tornara empresário bem-sucedido, jornalista respeitável, articulista dos
bons, fundador de jornal importante na imprensa soteropolitana.
Quis o destino que me encontrasse com ele na Academia de
Letras da Bahia. Era o espaço que encontrara em boa hora para escrever páginas
valorosas de sua biografia, fazer acréscimos de natureza cultural à honrosa
instituição e exercer uma faceta que eu ainda não conhecia, a do orador de
dicção envolvente, que unia sem esforço, na palavra eloquente, fácil, a memória
prodigiosa à erudição com citações certeiras de autores universais. Nessa
ocasião não faltava o humor para tirar do sério os que ouviam o orador vestido
de crenças e verdades, histórias e fatos memoráveis, que a todos hipnotizava.
De uns anos para cá tornou-se ensaísta de primeira linha, autor de alentados volumes com estudos críticos sobre os gigantes da alma, como A Inveja Nossa de Cada Dia e Anatomia do Ódio. Em A Força da Vocação no Desenvolvimento das Pessoas, publica uma espécie de dicionário em que analisa cinquenta e uma personalidades marcantes do país. Ao perceber uma carência de títulos no mercado que ensinassem como governar um município, estado, ou mesmo um país, o baiano Joaci Góes desenvolveu alguns estudos e assim criou um corpo de ideias para lançar o seu próprio livro sobre o assunto: Como Governar um Estado.
Bom saber que como ensaísta de temas que acompanham o homem
ao curso dos tempos vem tendo boa receptividade no ambiente cultural
brasileiro, em especial entre os expoentes da crítica especializada.
*Cyro de Mattos é autor de 80 livros, de diversos gêneros. É também publicado em Portugal, Itália, França, Espanha, Alemanha, Dinamarca, Rússia e Estados Unidos. Membro da Academia de Letras da Bahia, Ordem do Mérito do Governo da Bahia, Pen Clube do Brasil e Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Distinguido com a Medalha Zumbi dos Palmares da Câmara de Vereadores de Salvador. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.
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