Eu era criança e ficava feliz quando meus pais me levavam à casa de Maria do Carmo Mendonça, parente cujo grau jamais consegui decifrar. A família dela tinha posses, uma casa boa, geladeira. Ter geladeira era indício de bem situado. Nada disso me importava, Maria do Carmo era dona de dois tesouros: a coleção completa da revista Tico-Tico e a coleção completa da Biblioteca Infantil Melhoramentos, mais de cem volumes. Havia um acordo entre ela e meu pai. Ela me emprestava um exemplar por vez da Biblioteca Infantil ou de O Tico-Tico. Cada vez que eu devolvia, ela examinava com lupa se não havia manchas de dedos sujos, nada rasgado, perfeito estado de conservação. Assim, aprendi a cuidar de livros.
Um dia, a parente abriu o jogo. Pode levar este livro aqui,
mas esconda. Leia sem que ninguém veja. Tem muita coisa inapropriada. Uma
vizinha, a Odete Malkomes, me explicou que inapropriado era algo proibido,
sacanagem (eu lá sabia o que isso queria dizer?), pecaminoso, contra a lei de
Deus. Bastou, escondi o livro no galinheiro, debaixo de um telhadinho que
protegia as galinhas da chuva. Mil e Uma Noites, chamava-se este livro. Que li
num repente. Mas onde estava a tal sacanagem? Não entendi e conversei com
Odete, que era boa gente. E ela: 'Pois não viu que Sherazade conta uma história
por noite ao sultão, depois o sultão come a moça?'.
Na verdade, eu não tinha entendido isso. O que queria dizer
comia? Foi meu primo-irmão José de Anchieta, que tinha nome de santo, mas
conhecia tudo que era safadeza, que me explicou o significado de 'comer'.
Dali em diante, e por décadas, reli As Mil e Uma Noites
fantasiando tudo, a cabeça agitada, meu sonho era ser sultão. Lá pelos 16 anos
soube que as edições de As Mil e Uma Noites eram todas expurgadas. Limpas,
puras. O que havia de safadeza e indecência tinha sido eliminado por um
tradutor de nome Galante, que, ao transportar do árabe para o francês,
transformou o livro em cândidas histórias. Somente depois dos 70 anos descobri
que um sujeito de nome imponente, Mamede Mustafa Jarouche, se meteu a buscar os
originais de As Mil e Uma Noites em tudo que era país árabe, se enfiando em
empreitada gigantesca. Traduzir as histórias de Sherazade como eram
originalmente em toda sua sensualidade, lascívia, carnalidade. Ou seja, sua
libidinagem. Assim ressurgiu em português, sem cortes, censuras, carolices, uma
das mais lindas obras da literatura mundial. Pura poesia. Um livro que é também
sobre o poder das mulheres
Nova edição, agora da Biblioteca Azul da Globo. Por causa de
Sherazade faz semanas que nada sei da CPI da Covid, das sacanagens de Pazuello
e do Queiroga e da Precisa, e do Marcony e dos que se meteram nesse trambique
enorme, criminoso. Não tenho seguido esse rolo que envolve a morte de
brasileiros. Negociatas que custaram vidas por causa de dinheiro. 'Money money,
money makes the world go around, the world go around', como cantaram Liza
Minelli e Joel Grey no filme Cabaret, de Bob Fosse. Não me ligo no noticiário.
Não ouço rádio. Não leio jornal. Para não me contaminar. Sigo Sherazade.
Delicio-me a cada noite.
Que astuta, esta mulher. Acaba uma noite, vem outra e as
coisas se misturam, amor, poesia, sensualidade, esperteza, safadeza, humor,
lirismo se imbricam. Que poder narrativo. E vou para a próxima, e leio e
releio, e me encanto, e me esvazio das infâmias e dos rebaixamentos e das
ignobilidades e vilipêndios e abjeções e opróbrios vomitados a cada momento
nessa CPI da infâmia. Me enojo a cada resposta, e fica pior quando amparados
pela lei, nada dizem, se culpando mais. Quanto mais silêncio, mais culpa
parecem ter essas testemunhas. Tenho me entregue à Sherazade, atravessando suas
662 páginas com alegria, sorvendo-as sensualmente, lubricamente (epa),
afetuosamente, porque aqui é tudo amor, literatura, fantasia, delírio, delícia,
tesão, e a morte é vencida a cada dia, vencida por contos e recontos e relatos
sem fim. A vida valendo ser vivida.
O Estado de S. Paulo, 24/09/2021
https://www.academia.org.br/artigos/sherazade-vence-morte
Ignácio de Loyola Brandão - Décimo ocupante da Cadeira 11da
ABL, eleito em 14 de março de 2019 na sucessão do Acadêmico Helio Jaguaribe.
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