Romance do negro em torto arado
Cyro de Mattos*
Romance do baiano Itamar Vieira Junior, Torto arado (2019) conquistou o prêmio Internacional Leya, um dos mais prestigiados em língua portuguesa, que tornou o autor em um fenômeno da literatura contemporânea. Graças à láurea merecida foi conduzido para além das fronteiras nacionais. O prêmio conquistado deu fama ao autor que há pouco tempo só tinha publicado dois livros de contos: Os dias e Oração do carrasco. O romance rendeu ainda a Itamar Vieira Junior os cobiçados prêmios Jabuti e Oceanos de Literatura, o que expandiu ainda mais o seu nome de romancista e impôs a tradução da sua obra em outros idiomas.
Romance de narrativa segura, que
encanta, dotado de uma uniformidade em sua construção estética que satisfaz,
apresenta-se com dois planos no enfrentamento do tema, um de natureza histórica
conectado à solidariedade da realidade social e o outro nas relações com o
mágico, adotado por alguns de seus personagens, em convívio atemporal com os
espíritos conhecidos como encantados. Intenso na carga dramática prende na
medida em que vai desenvolvendo a trama vivida por Zeca Chapéu Grande, mãe
Salu, as filhas Belonísia e Bibiana, vó Donana, e outras personagens paralelas,
como Crispina, Crispiniana, Tobias, Severo, Domingas, Maria Cabocla, compadre
Saturnino, o gerente Sutério, Miúda e até mesmo pelos encantados Velho Nagô e
Santa Rita Pesqueira.
O tema do romance atravessa o Brasil
mascarado em outra face da escravidão do negro, esse desgraçado vivente que um
dia estupidamente foi retirado de África para fornecer mão de obra gratuita nos
longes de outras terras. O discurso do
baiano Itamar Vieira Junior motiva-se assim com o tema que envolve o
descendente desse negro esquecido depois da abolição da escravatura. Quando
então soube de outro tipo de escravidão, imposto no trabalho sem paga pelo dono
da terra.
Chegando à fazenda, depois de vagar, vulnerável por
todos os lados, recebia de favor a morada de adobe e vara trançada, de
fragilidade visível para que não durasse com o uso e fosse substituída nos
mesmos moldes pelos descendentes da mão servil e gratuita. No jogo que só
favorecia ao dono da terra, não era permitido ao trabalhador que fosse
construída uma casa de tijolo. Na morada
precária, sem água encanada e energia elétrica, exigia-se de seu morador que
trabalhasse a terra sem receber remuneração e tudo que produzisse nela por mãos
calosas, na lavoura de duração perene, era destinado ao dono da fazenda.
Difícil que em ambiente de tamanha
dificuldade o trabalhador arranjasse tempo para zelar de sua lavoura de pouca duração
na várzea quando estava seca, isso era tarefa para a mulher e os filhos. O
quintal da casa era também onde a mulher plantava a abóbora, a batata-doce, o
quiabo, o tomate e o alface. O alimento sempre era escasso nos períodos de seca
prolongada ou de chuva em abundância. Nessas horas de mais vexame, recorria-se
ao parente e ao vizinho para arranjar algo que abrandasse o duro passadio. No estio demorado, o trabalhador
alimentava-se com beiju de jatobá, peixe pequeno pescado no rio empoçado. Nas
cheias, em algum braço do rio ou lagoa que se formava na várzea, pescava-se o
peixe grande, o que até certo ponto aliviava.
Torto arado conta a história das
irmãs Bibiana e Belonísia, que ainda pré-adolescentes sofrem o acidente com a
faca de cabo de marfim e lâmina que brilha como espelho, escondida entre as
roupas velhas da avó Donana, na mala debaixo da cama. É quando a aguçada curiosidade das irmãs
força que descubram o que existe guardado na mala debaixo da cama, fazendo que
se vejam surpresas diante da faca de intenso brilho na lâmina e com o cabo de
marfim. Ocorre o acidente em que uma delas tem a língua cortada enquanto a
outra apenas fica ferida. A irmã que ficou sem a língua só será revelada no
final do romance, recurso que o autor usa com habilidade na técnica de
sustentar o suspense para aprofundar a narrativa na trama, em cujos atalhos de
passagens impressionantes desenvolvem-se outros acontecimentos arrojados
vividos pelas duas personagens.
Com o acidente, uma irmã fica como
responsável na transmissão dos
sentimentos da outra, do significado dos dizeres em silêncio provocados pela
espontaneidade do riso ou desconforto da tristeza. Na situação que sempre
existia com a compreensão recíproca, numa convivência de gestos expressos com o
sentimento de amor fraterno, como antes nunca deixou de existir. Mais unidas
estavam agora, apreensivas, até certo ponto cautelosas, uma pressentindo o que
se passava no coração da outra, sem poder expressar suas reações diante dos
seres e das coisas.
Aparece em suas vidas o primo
Severo para separá-las nos sentimentos bons que existiam entre elas, naquela
irmandade formada pela cadência do viver desprovida de animosidade. As chamas
do amor surgem para aquecer de repente o coração de cada uma, as pulsações
agora são causadas pelas visões que as inquietam, originadas pela jovialidade
do primo. A desconfiança e o ciúme são mazelas que nascem dessas chamas para
separá-las no rancor, que não souberam antes em qualquer circunstância. O diálogo nutrido pelo afeto já não se faz
disponível pela alma que teme ser ofendida pela vitória do amor da outra, a que
não ficou emudecida com o acidente provocado pela faca de cabo de marfim. Somente no final é também revelado o mistério
que envolve a faca de lâmina brilhante, durante tanto tempo guardando o segredo
de algo fatal por Donana, que reage zangada quando pressente que o instrumento
afiado possa ser descoberto por algum curioso.
Bibiana faz-se agricultora com o
passar do tempo enquanto a irmã Belonísia acompanha o marido quando ele se
afasta da fazenda Água Negra em busca de melhores dias na cidade. É lá, em chão
estranho, de desafio e dificuldade, que ela consegue se formar em
professora. De volta às origens tempos
depois, o marido entrega-se à causa de conscientização dos que trabalham na
terra com as mãos incansáveis, recebendo no final como recompensa o descanso no
cemitério Viração. E dessa maneira,
conscientes do discurso solidário,
possam se libertar do jugo imposto na rotina do trabalho sem paga, que exaure, torna a vida sofrida,
inconcebível, sugada na lavra até a derradeira gota de suor, que só encontra
sossego no sumidouro de uma cova rasa.
Severo é assassinado. Belonísia decide retomar a luta do marido para a
libertação dos que vivem submissos à canga do dono da terra, o único que tira
proveito do trabalho exercido em condição desumana.
Em Torto arado, romance
audacioso na denúncia social, como Beira rio beira vida, do piauiense
Assis Brasil, o autor não se omite quando é para dar seu testemunho crítico
sobre a questão social da terra usada em níveis desumanos. Faz ecoar de suas
páginas o grito pungente riscado nas dores de uma realidade soprada pelo vento
de amanhecer áspero, que só encontra alento no escape para uma hora mais branda
vivida no plano espiritual com os encantados.
No final de romance tão belo
quanto revelador da vida encalhada numa estrutura arcaica, a personagem Salu
deixa seu grito ecoar contra os donos da terra e o uso dela de maneira
desumana, num misto de coragem assombrosa e grandeza humana:
“Vocês podem até me arrancar dela como uma erva ruim, mas nunca irão arrancar a terra de mim.” (página 230, edição 2020)
Para esse romance de incursão
intimista e social na realidade rural brasileira, motivado pela gente do
quilombo, a mensagem de uma épica contemporânea é encerrada com o pensamento
reflexivo de afirmação lúcida.
“Sobre a terra, há de viver
sempre o mais forte.” (página 262,
ano 2020)
À afirmação de mensagem poderosa pode ser adicionada a bandeira do sentimento do amor, que é de fato o mais forte, e o da liberdade, o mais valoroso.
Referência
*Cyro de Mattos é autor de 80 livros, de diversos gêneros. É também publicado em Portugal, Itália, França, Espanha, Alemanha, Dinamarca, Rússia e Estados Unidos. Membro da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil e Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.
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