Cyro de Mattos
Quando estreou aos 23 anos com Perto do coração
selvagem (1943), Clarice Lispector causou impacto no ambiente literário e
na crítica especializada da época. É que o romance vinha com um discurso
diferente do que a tradição costumava conceber e executar no texto com bases no
psicologismo e nas referências dominantes da realidade social, fosse o contexto
da narrativa no meio urbano ou rural.
O romance abolia o tempo linear e usava o fluxo de
consciência para que a personagem no pensamento exprimisse suas incertezas e
tormentos. Nas circunstâncias do tempo exterior passava a ser vista por meio de
outro discurso, que fazia indagações sobre um coração selvagem, pulsando sem
encontrar algo que o fizesse em harmonia com o mundo.
A ficcionista inovadora chegava para revolucionar na forma
de contar a vida de Joana, personagem de caráter impulsivo, destemida, que
tentava encontrar a sua verdade na vida. Não gostava de pessoas bondosas e de
maneiras agradáveis. Desde pequena sente-se deslocada da vida exterior, adulta
se vê tomada pelas incertezas de como aconteciam suas maneiras de ser perante a
existência.
Ao escrever sobre a vida de Joana, que ficou sem a mãe e o
pai, a autora, sem o uso do tempo linear, mostrava com a aproximação do leitor
às circunstâncias existenciais da personagem como se contraponteavam as
relações críticas de uma mulher no contexto familiar. Clarice Lispector não
queria mais a fabulação e a linguagem tecidas com a coerência da ordem
exterior, mas como fatores mutilados pela desordem inventiva do sistema verbal,
a frase construída com a veemência de inconsequências, incoerências formais que
preferem dialogar no silêncio, meditar com o vazio, pois é no vazio que se
passa o tempo. Como certa vez ela disse em Onde estivestes de noite?
(1974, página 34), “mas quando se trata da vida mesmo – quem nos ampara? – pois
cada um é um. E cada vida tem que ser amparada por essa própria vida desse
cada-um.”
Tentando pôr em frases a mais oculta e sutil sensação,
desobedecendo a necessidade exigente de veracidade, Clarice Lispector
permitia-se em seu romance de estreia apenas a transmissão da continuidade do
clima narrativo. Com expressão própria e pioneira elaborava um discurso
que conservava a linguagem dizendo o máximo no mínimo da frase, com cortes
poéticos de dor pesada. Operava a palavra como lâmina, a causar
profundidades na leitura arguta que empreendia sobre os seres vivos e as coisas
permanentes, nas relações e nos estados de alma em que o coração selvagem vibra
e emerge de desafios e anseios.
O romance de estreia de Clarice Lispector não se
processa como simples relatório amparado por linguagem sedutora e enredo que
prende para o entretenimento. Para a autora, até na lírica do trivial se requer
do romance invenção na forma de romper com os meios tradicionais de narrar uma
história, oferecer acontecimentos que nem sempre resvalam por caminhos
previsíveis, fáceis de apreensão pelo leitor apressado, que não consegue
vislumbrar o sonho quando o processo criativo usa de reticências para dizer da
existência. Por temperamento, vê-se incapaz de tocar em assuntos como a náusea,
por exemplo, com um enfoque provido de introspeção na frase, pois sempre
transmite assim sensação de que a história não tem
desfecho lógico decorrente do feito extraordinário.
O desconhecido vicia em Clarice Lispector, o que revela é
tão novo, surpreendente, que se tem a impressão de que raros ficcionistas entre
nós tenham realizado como ela a proeza de falar do nada para desvendar o
tudo. De descobrir pulsações onde existem reflexos da vida no estreitamento do
peito, como se os batimentos do coração ocorressem com o seu brilho aceso para
iluminar a parte noturna do ser, de tal modo as situações emergem de um espelho
humano com suas possíveis refrações. Para tanto é preciso meditar com o
silêncio e dialogar com o vazio para extrair dessa ligação novos sentidos do mundo.
Não se queira em Clarice Lispector de Perto do coração
selvagem uma história representativa de vida, que tenha começo na
sequência cronológica do tempo, motivada pelos feitos extraordinários
desdobrados para um final coerente. A abstração na lógica do real se dá
porque a criatura humana é o ser do tempo. É cíclica a existência, que não tem
princípio nem fim. Seus personagens atormentados agora procedem às
avessas na órbita objetiva das circunstâncias abstraídas da realidade
exterior.
Vale lembrar que, no novo cenário herdado dos escombros de
duas avassaladoras guerras mundiais, o existencialismo era a concepção de mundo
que a filosofia oferecia para o ser humano caminhar no que parecia ser o abismo
da razão. Dentro dessa nova corrente de pensar o homem na órbita de suas
circunstâncias existenciais, Heidegger tem a concepção de que a criatura humana
é um ser do tempo, para Sartre um ser da morte. A concepção da vida nessas
formas existenciais do pensamento iria ser aproveitada por alguns de nossos ficcionistas
no plano de suas criações.
Em Adonias Filho, o homem trágico era transportado da
Grécia para viver na infância da selva situada no sul da Bahia, submisso às
forças do destino, que o tratavam como um servo da morte em ambiente primitivo.
O romancista de Memória de Lázaro reproduzia a concepção de Faulkner
quando afirmava que o ser humano construía o seu destino trágico, era ele mesmo
o agente da infelicidade e da loucura, das forças que o levam à dor e às
paixões. Em Clarice Lispector, as essencialidades humanas permaneciam
mergulhadas no silêncio e no vazio das coisas destituídas de datas. Como
ser do tempo, o homem não é divisível porque movimenta-se dentro do
tempo, habita um território sem limites, em silêncio, quando e onde apenas ele
é.
Como elo de um ciclo que existe entre as coisas vivas e as
não vivas, transita ao largo de uma sofrida aprendizagem até se encontrar
definitivamente na união sensual do dia para a sua hora mais
crepuscular.
*Cyro de Mattos é ficcionista, poeta e ensaísta. Autor de mais de 50 obras pessoais, de diversos gêneros. Premiado no Brasil e exterior. Membro da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil e Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. Distinguido com a Medalha Zumbi dos Palmares da Câmara de Vereadores de Salvador. Primeiro Doutor Honoris Causa da UESC. Publicado também em Portugal, Itália, França, Alemanha, Espanha e nos Estados Unidos.
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