Boccaccio
Não falemos do Brasil. Falta oxigênio moral e político.
Caminhamos entre as ruínas da pandemia, provocadas pela necropolítica. Penso
nas novelas do grande leitor de Dante.
O Decamerão de Boccaccio é capítulo essencial da
História do Ocidente. E me refiro ao núcleo do Humanismo, aos prelúdios do
Renascimento. Trata-se da reconquista da prosa, a narrativa do mundo e sua
translação, em torno da palavra. Um gesto que ilumina parte de nossa herança:
as formas simbólicas, o lugar da cultura e da ciência. Em outras palavras: o
poder soberano da literatura. Um mundo novo, a divina mímesis, como disse Pier
Paolo Pasolini.
Prosa aberta e onidirecional. Eis o dinamismo da obra de
Boccaccio: cresce na frase o batimento cardíaco, a métrica estendida, a
solidariedade narrativa, que ordena e distribui, dissolve e coagula, a
experiência da sintaxe, enquanto paisagem verbal, como tessitura robusta e
delicada.
A prosa doma o silêncio, empresta-lhe novo destino. O volume
de silêncio nasce do contexto que o circunscreve. Irrompe como contracanto, na
ironia, no contexto, de quanto se insinua, a arte de dizer o que não se diz,
nos vários níveis do discurso. Boccaccio – com um sorriso nos lábios,
entre simpatia e compaixão – tece e destece a ambiguidade, as dobras do coração
e da palavra, em diálogo ou solilóquio.
Prosa de Boccaccio avança por terra e mar: como nunca
dantes. Nostalgia do mais. Saudade do infinito. Novelas que movem o sol e as
estrelas. O Céu agora passa para a Terra. A fome da totalidade é seu motor
primeiro. A humana condição já não tem fim. Boccaccio aposta na inscrição do
mundo, nas demandas semânticas, novas e ousadas. Parte da nomeação do universo
inflacionário. Diríamos hoje, em chave metafórica, o desvio para o vermelho, a
fuga das galáxias.
O Decamerão é fruto da polifonia. Intensa e bela, de
que descendem Shakespeare, Balzac e Dostoievski. A potência da linguagem opera
agora em seus limites: roça a pele vibrátil do mundo, alterno e vasto, poroso e
descontínuo. E desafia sem piedade os inquilinos do tempo.
Boccaccio compara seu trabalho ao do pintor, na escolha e na
fabricação dos pigmentos, na gradação da cor e no relativo campo de visão. A
obra de arte adquire estatuto próprio, um fim em si mesmo, esse caráter
autotélico da arte, consagrado nos tempos modernos.
Não se deve, contudo, perder de vista algo iluminador:
Boccaccio é o grande poeta que escreve em prosa. A força da poesia
inaugura novas formas de apropriação, intensidade e sinergia da matéria narrada.
Suas novelas guardam um frescor incomparável, juventude que não passa,
condensado de beleza e variação: nas cenas de erotismo ou misticismo, na burla
impiedosa, na tristeza mais sublime, ou na vitória, afinal, da inteligência
frente ao destino, antecipando algo da virtude e da fortuna, em Maquiavel.
A poesia de Boccaccio, ele mesmo artífice de águas claras,
amigo epistolar de Petrarca, e leitor entusiasmado de Dante, apresenta suas
melhores credenciais.
A primeira prosa dos tempos modernos respira a poesia
secreta do mundo, que ele tanto amou, quando se dispôs a inscrevê-la num âmbito
indelével: no eterno presente da leitura. É uma forma de saber que os
brasileiros estamos vivos. Os sobreviventes. Até agora.
Jornal de Letras, Artes e Ideias (Lisboa), 01/06/2021
https://www.academia.org.br/artigos/boccaccio
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Marco Lucchesi - Sétimo ocupante da cadeira nº 15 da ABL,
eleito em 3 de março de 2011, na sucessão de Pe. Fernando Bastos de Ávila, foi
recebido em 20 de maio de 2011 pelo Acadêmico Tarcísio Padilha. Foi eleito
Presidente da ABL para o exercício de 2018.
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