A Poesia Descuidada de Iolanda Costa
Cyro de Mattos
Iolanda Costa faz sua estreia com Poemas sem nenhum cuidado
(2004), editora da Fundação Itabunense de Cultura e Cidadania, com prefácio de
Jorge de Souza Araújo, em livro duplo, no qual figura Ricardo Dantas como o outro
poeta estreante, com a obra Lembrança de uma infância. O seu segundo livro é Amarelo por dentro
(2009), com prefácio de Florisvaldo Mattos. Ela publicou ainda a plaqueta Alguns
poemas, reunidos em pequeno
conjunto, do período compreendido entre 2004 e 2015.
Embora o
título do livro seja de Poemas sem nenhum cuidado, dando a impressão de elenco
poético estruturado no exercício de estética fácil, o que neles se observa é a
aptidão de conduta lúdica com as palavras gravadas no jogo dialético da vida. O
anúncio que apregoa o título desconcerta-se face a intimidade de uma estética transgressiva,
que se serve do lúdico nos cantos
breves. A dicção transmuda os instantes
do mundo em “água rasa de palavras cheias.”
Iolanda
Costa é um poeta experimental, mas que não despreza a emoção, o momento
sensível que decorre da metáfora, com figurações, analogias, relações do tempo
e passagem, soluço e abafo, ternuras que oscilam na mão com a perda,
presença do sol e referências da noite
que tudo apaga. Traçado o poema com poesia, fruto que se quer
comunicativo com o componente
lúdico, no sistema verbal transgredido, configuram-se então o tempo e o modo de peixes e flores, que hão de nascer da boca
entreaberta de ideias.
Anote-se
que há poesia na vida, sem poema. Há
poema, vazio de significado, sem poesia. A poesia é essa energia que ilumina o
ser e alcança nossa harmonia no mundo.
Diz de sonho acordado, do
sentimento germinado no onírico, como feixe de
brilhos na visão que absorve
beleza e encantamento dos seres e coisas ante o efêmero e o eterno. Já o poema resulta da experiência do sentir e
do pensar, que se atreve ser na aventura
da palavra com
múltiplas faces. Constituído de
tremores, mora na asa do ser. Sua capacidade devolve à existência o que é apenas um momento, um
curto prelúdio a que
segue o desencanto ou de novo um
outro som ou cor.
Em Iolanda
Costa desprende-se o poema com poesia
aglutinada em ritmos livres, cada verso dá-nos a impressão de total
espontaneidade, apenas a impressão. A
ideia que inaugura proposições
novas vem com o vocábulo no jogo da semântica, que se reconhece no instante e desnuda o
todo, espraia a sensação de que o enunciado não tem margens, princípio, nem fim. Nessa poética do jogo e apuro da palavra, a cor e o som
são inscritos numa faixa de presságio, inauguram-se na benevolência dos contatos, da carícia que a ave traz no bico como sentimento forte do amor. Testemunho de vida,
tábua de surpresas, essa poética sem a
métrica e a sonoridade da rima
confronta com facilidade, em
nível de mimese, o eu de um lado e o objeto do outro, mas
também faz seus mergulhos no pensamento, transmuda a emoção em ritmos que soam entrecortados de alusões, frente
a mudanças e nudez das linhas.
Esse jogo
usual dos instantes, em conversa constante com a vida, essa ideia de ternura da
mão que oscila, entre sons e cores, está dentro de Iolanda Costa. Ressurge nas
letras, fixa-se na escrita gravada
por linhas e situações obtusas, captadas
pela vocação autêntica da poeta, que sabe armar a brincadeira do poema
no ser–estar do mundo com o fácil,
mas que é sério. Intercala-se
respeitável no interior do mundo, diz
de homens tristes, desaparecidos no horizonte. A poesia
apreendida nessa música vocabular está presente em tudo, valoriza-se entre luzes e sombras, duvidosa não sabe que cor estará vestindo
na próxima estação.
Transforma
a emoção com a forma de
letras descuidadas, determinantes
do ânimo que impinge no poema, cunha
representações como “sinos, sorrisos, santuários e sendas.” Entreabertas de sonhos, em espelhos raros, de madrugada quando são contumazes
segredos, no vento de amanhecer quando sopram a face órfã
das claves agudas, ou
quando desaparecem como objetos
nas sombras. A fatura do poema revestido de jogo
vocabular dá-se com competência, torna-se instigante nessas normas
inversas de criatividade. Apresentam-se
com a feição de lúdicas invenções para com sinais novos imprimir na pele segredos e efingies/ impressões partituras e notas/ de antigos altares.
Às vezes, o
poema que nasce com os objetos é como
um facho aceso no instante e
desaparece na sombra, toma forma fugitiva com
o seu jeito de breve observação
do sentimento. É emoção e forma em síntese, reprodução de clima
anímico liricamente coeso no instante.
Está no poema “Distância” que “a felicidade/ titubeia / entre o / amor e a /
saudade.”
O
exercício qualificado desses poemas,
sinalizados pelo poeta sem nenhum
cuidado, surge também com os vazios nas
linhas, que servem como reforço das associações e sugestões do
caráter do verso, composto de sutilezas determinantes, nuances
de ritmo e significado. Poemas sem nenhum cuidado é livro de poeta estreante com resultados
positivos na estrutura inovadora. Sua
clara funcionalidade moderna forma o canto capaz de
atrair o leitor paciente
para escutar o som interior do
mundo, testemunhar “o fervilhar das
cores na disputa dos matizes.”
Iolanda
Costa é graduada em Filosofia e especialista em História Regional pela
Universidade Estadual de Santa Cruz.
Participou da antologia Poetas Novos da Região Cacaueira. Sua dissertação no
curso de mestrado intitula-se Cinema: Sedução, Lazer e Entretenimento no
Cotidiano Itabunense.
Cyro de Mattos é escritor e poeta. Membro Titular da
Academia de Letras da Bahia e do Pen Clube do Brasil. Doutor Honoris Causa da
Universidade Estadual de Santa Cruz.
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