9 de dezembro de 2020
Péricles Capanema
Fiquei órfão de pai aos cinco anos. Esconderam-me a perda,
era natural não me quisessem ciente, evitavam sofrimentos de um toquinho de
gente despreparado para o choque. Estava viajando, voltaria logo, diziam.
Menino acredita em tudo. Um primo, seis meses mais novo, revelou-me a verdade
no meio da rua. Ele nunca se deu conta que dele veio a revelação atroz. Até
hoje tenho nítida a cena, navalha na carne, das dilacerações mais traumáticas
da vida. Contudo vou tratar hoje de outra orfandade, também dilacerante e
trágica, não a de um menino desconhecido do interior mineiro, que afeta
multidões mundo afora.
Fernando Haddad, calculista como todo político de muita
estrada, vem se posicionando como intelectual com tintas de moderação, procura
atrair a atenção no palco por desvestir em ocasiões escolhidas a capa do PT e
enfiar no lugar a toga do professor; sob aspectos de um Fernando Henrique uns
30 anos mais moço. O prócer petista falou sobre as últimas eleições e, no meio
de enxurrada de reflexões carregadas de segundas intenções, veio o que ninguém
ou quase ninguém quis dizer: “Houve um deslocamento do eleitorado para
direita e para a extrema direita”. Haddad também em tais declarações tinha
segundas intenções, mas não julgo o momento de destacá-las. Em política, nada é
ocioso.
Ele caminhou na contramão das opiniões em geral
divulgadas: “Houve um deslocamento do eleitorado para a direita e para a
extrema direita”. É natural, nada poderia irritar mais um político de esquerda.
E por isso procura macular tal migração. Não embarco aí, meu foco é outro.
Concordo com Fernando Haddad em um ponto. Apesar de todas as decepções, apesar
de todas as contrafações, apesar de todas e piores surpresas, o sentimento
conservador resiste. Permanece um substrato na opinião pública que recusa a
desordem, antipatiza com a desonestidade, anseia por rumo estável de decência e
crescimento. É a parte que mais presta, a parte mais saudável, a sanior
pars; e boa parte dela hoje está órfã. Não tem em quem confiar, nem vê
perspectivas no horizonte. Provavelmente continuará órfã, é longo e difícil
trabalho resgatá-la da orfandade; ou, pior, temo muito, a experiência anterior
me deixa escaldado, embarque em algum momento em alguma nova aventura
destrutiva, engolindo utopias, que intoxicarão esperanças sadias.
Os órfãos (órfãos políticos, fique claro) do Brasil, assim
como os órfãos da Argentina, os órfãos dos Estados Unidos, os órfãos mundo afora,
em geral sentem faltam de ideal sistematizado e alcançável; e em decorrência de
tal ausência, de um programa e de um caminho. Em duas palavras, não está claro
o ponto de chegada; digo logo, deveria ser a ordem temporal cristã. E não
enxergam quem a ele deverá conduzir.
E então, muitas vezes no passado, na correria irrefletida e
atabalhoada em busca da solução (espécie de pai mítico), agarraram-se a uma
pessoa ou movimento que lhes parecia ter pelo menos um ponto favorável em
relação a todo o resto: com ele podia dar certo, podiam conseguir pelo menos
parte do que almejavam. A aparente eficácia encobria em geral defeitos que
depois se revelariam, acabariam destruindo o personagem fictício, tornariam
inviável a obtenção das soluções esperadas e lançariam descrédito, desânimo e
dúvidas sobre o movimento.
Terrível e repetido desfecho, filme que se assiste desde
pelo menos o começo do século XIX. De passagem deixa ver a profundidadedo
enraizamento conservador. Desde o século XIX? Sim, desde o começo. Pelo menos.
Exemplo? Com Napoleão já foi assim, talvez tenha sido o maior exemplo. O vivido
chefe militar aproveitou-se do horror que a Revolução Francesa tinha provocado,
o povo estava exausto de sangue e anarquia. Puxou para si as simpatias de
grande parte dos que queriam reagir. O Corso era forte e próximo, Luís XVIII
era distante e fraco; o Corso não mostrava escrúpulos, prendia e arrebentava,
Luís XVIII ainda tinha hábitos da corte do Ancien Régime; o Corso sabia
mandar, Luís XVIII parecia indeciso. A comparação deprimente continuava sem
fim. Em resumo, no jovem e enérgico general se farejavam vitórias, Luís XVIII,
liderança mofada, cheirava a naftalina. O bonapartismo triunfante impôs sua
concepção de ordem, estatizante e autoritária rescendendo a solução genial. Por
alguns anos fez delirar parte da França, despertou admiradores no exterior,
formou imitadores. Depois vieram as decepções, a derrota, a humilhação da
França invadida, a juventude sacrificada nas batalhas, as famílias destroçadas.
Luís XVIII assumiu, ainda arrumou um pouco a casa. A transposição com
adaptações para outros personagens ao longo da história não será difícil.
Realço um dos motivos dessa anomalia mortal. Talvez seja o
verso mais famoso do “Cantar de Mio Cid”: “Dios, qué buen vassalo, si oviesse
buen señor”. O vassalo ansiava por bom senhor, via nele ocasião de ótimos
serviços e aperfeiçoamentos. Empurro de lado as disputas eruditas a respeito e
jogo para o primeiro plano a importância central do bom senhor naquela canção
de gesta. O anelo, o sonho, o sebastianismo avant la lettre, aqui e em
tantos outros lugares, evidenciam um lado louvável, a disposição da adesão
fácil e entusiasmada a uma liderança que leva a bom porto. De outro lado, no
reverso da medalha, muitas vezes tal postura esconde deficiências, entre os
quais desponta a preguiça demolidora de desconfiar das soluções fáceis e de
olhar de frente, riscados nas testas de supostos salvadores, os sintomas
preocupantes, na verdade claros sinais precursores de desastres futuros. É
penoso sondar autenticidade e rumo certo em chefes aclamados que irradiam
atmosfera de vitória.
Um rumo certo, um sintoma de autenticidade. Lembrei acima,
um teste do tornassol para reação conservadora salutar: a defesa da ordem
temporal cristã, fundada na família, no princípio de subsidiariedade, (entre
outras instituições e princípios); enfim, buscar a continuidade e
aperfeiçoamento do que a Civilização Cristã produziu no Ocidente. Na presente
quadra histórica, não vejo outro bom começo. Sem o trânsito por este vestíbulo,
repetiremos fracassos do passado, passando da ilusão para a orfandade, da
orfandade para a ilusão; serão descaminhos e derrotas. Pensemos todos nisso
neste fim de ano. Feliz e Santo Natal, bom ano novo para todos.
https://www.abim.inf.br/orfandade/
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