23 de dezembro de 2020
Paulo Henrique Américo de Araújo
Quando o solitário dono da casa se levantou da cama, em
decorrência da insônia, o fogo da lareira ainda persistia aceso, apesar da hora
avançada naquela noite fria. A cabeça dele doía, ao aproximar-se das últimas
brasas fumegantes. Algumas pressões no fole bastariam, para manter o calor por
mais alguns minutos; e o sono voltaria logo — pensou ele. E sentou-se na
poltrona da sala.
Aquele homem de meia idade costumava sentar-se na macia poltrona da sala, durante a noite, e entregar-se aos seus pensamentos. Realmente entretinha-se enquanto pensava, sobretudo porque o objeto de suas intermináveis reflexões era… ele mesmo! Aliás, nada fazia na vida, além dessa atividade: pensar em si.
Não trabalhava, pois as magras rendas herdadas do pai
proporcionavam-lhe alimento suficiente e teto. Servia-lhe muito bem a casa
pequena, porém confortável. Desde muito jovem havia rejeitado a ideia de
constituir família. Quantas preocupações isso lhe traria… Mudara-se para uma
cidadezinha do interior — a menor da região — precisamente para fugir dos
vizinhos barulhentos, pedintes e vendedores, que enxameavam na capital. Mas nos
últimos dias, uma movimentação anormal nas ruas causava-lhe alguns incômodos de
cidade grande, dos quais fugira.
Entretanto, uma vida tão medíocre e vazia não o deixava
tranquilo, pois tinha uma ambição intimamente ligada à atração por pensar em
si: “Como sair deste apagamento? Como quebrar este anonimato letárgico
e me tornar importante, famoso, alguém conhecido no mundo inteiro? Como fazer
com que meu nome se torne célebre?” Seus devaneios conduziam-no sempre
ao mesmo impasse, todas as noites, durante suas insônias, pois esse vazio lhe
causava remorsos.
Havia um paradoxo intrigante entre seu modo de vida, feito
de inação preguiçosa, e seus pensamentos dominados por ânsias egocêntricas.
Seus sonhos voavam longe nas noites mal dormidas: a fama mundial poderia iluminá-lo
depois de um grande feito de armas, ou talvez uma expressiva obra artística ou
intelectual… mas não dispunha de talentos para tanto. Chegou mesmo ao delírio
de planejar o assassinato de um governante qualquer, mas repelia-o a ideia de
entrar para a história como um criminoso. Não queria chegar a tais extremos, e
até a preguiça contribuía para não enveredar por aí. Difícil de explicar, mas
assim são as paranóias das mentalidades incoerentes.
O homem remoía-se nessas cogitações, quando ouviu batidas na
porta. Fingiu que não as escutava, e pensou indignado: Quem poderá ser a esta
hora? Como pode alguém me atormentar tão tarde da noite?
As batidas se repetiram. Enraivecido, ergueu-se da poltrona,
dirigiu-se à porta, e após destrancá-la abriu-a bruscamente:
— Que é?! — perguntou ao homem parado à entrada. Este,
surpreso, explicou-se:
— Desculpe o incômodo, senhor. Vi a luz acesa, e venho lhe
pedir ajuda.
“Temos viajado durante dias, minha esposa e eu. Chegamos tarde à vila, e não há hospedaria disponível onde possamos passar a noite”.
— Ajuda?! Sabe que horas são? Está me interrompendo num
assunto muito importante, no qual tenho despendido muito tempo.
O homem à porta era um viajante. Pobre, mas digno e alinhado
em seu porte; roupas simples, mas limpas. E insistiu:
— Peço perdão, mais uma vez. Temos viajado durante dias,
minha esposa e eu. Chegamos tarde à vila, e não há hospedaria disponível onde
possamos passar a noite.
Enquanto o viajante falava, o homem apertava os olhos para
enxergar através da escuridão. Vendo mais atrás a jovem esposa do viajante,
discerniu nela a apreensão no semblante. Tudo nela refletia delicadeza e
respeito, e uma luz fugidia revelou sua gestação em estado avançado.
Um movimento de compaixão perpassou a alma daquele homem:
esses não são andarilhos inconsequentes. Parece apenas boa gente em
dificuldades.
Infelizmente, anos inteiros vivendo sob o jugo da
autocontemplação e do ‘voltar-se para si mesmo’ bloqueavam nele a compaixão
devida ao desafortunado casal. A gestação da jovem contribuía para a percepção
de mais um fardo que lhe cairia nos ombros. Disse então asperamente:
— Irresponsável! Viajar assim com sua mulher gestante, sem
previdência alguma! Tenho que resolver um problema, e não posso lhes dar
atenção.
— Mas, senhor, apenas por esta noite… — insistiu o viajante,
antes de ser interrompido pelo dono da casa.
— É minha última palavra. Se quiserem, procurem uma gruta
ali mais adiante. Podem se alojar junto com os animais presos lá. Mas não digam
a ninguém que lhes indiquei o local. Não quero me envolver em assuntos dos
outros, os meus já me tomam muito tempo.
Vendo aquela resolução impiedosa, o viajante fez um gesto de
despedida e caminhou em direção à esposa. Desatou seu burrinho de carga, que
estava atrás de alguns arbustos, e caminharam em direção à gruta indicada pelo
homem.
O infeliz egoísta fechou-se novamente em sua casa, sentou-se
na poltrona, diante da lareira, e voltou à sua obsessão: tornar-se famoso em
todo mundo.1
Mal sabia ele que ali perto, na pobre gruta que indicou,
ocorreria o fato mais extraordinário de toda a História: o nascimento de Jesus
Cristo Nosso Senhor. Quanta glória para esse homem, se ele tivesse recebido São
José e a Santíssima Virgem em sua casa. Hoje seria reverenciado em todo o mundo
nas festividades do Natal. Seu nome estaria gravado na eternidade, vinculado ao
de quem recebeu em sua casa o Menino Deus que iria nascer.
O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira comentou, durante as festividades de um Natal, como Nosso Senhor procura atrair os homens para si nesse período abençoado: “Ele vai atrás de todos, meninos ou velhos, grandes ou pequenos, sábios ou ignorantes. Seja quem for, Ele vai atrás de todos. Pecadores, e às vezes pecadores imundos, Ele vai atrás deles e toca-lhes o coração, dizendo: ‘Meu filho, não queres vir a Mim? Nem agora queres vir a Mim? Pelo menos desta vez, pelo menos neste instante, deixa-te comover um pouco. Aqui estou Eu à tua procura, no interior de tua alma’”.2
Não sejamos como o egocêntrico do conto, que rejeitou o
maior dos presentes de Natal. Abramos a morada de nosso coração ao Menino Jesus
e à sua Mãe. Sobretudo, evitemos o pecado e estejamos atentos ao triste
abandono por que passa a Santa Igreja Católica em nossos dias. Eis um símbolo
cogente do abandono sofrido pela Sagrada Família.
Durante a noite sombria deste nosso século, temos obrigação,
como católicos, de fazer atos de reparação e amor à Esposa Mística de Cristo —
a Santa Igreja. Não deixemos que um exagerado ‘voltarmo-nos para nós mesmos’
provoque eventualmente nossa rejeição a Jesus, Maria e José, que batem à nossa
porta.
________________
Notas
1.Anos atrás, o autor deste artigo ouviu este conto de um
professor durante uma aula na faculdade. A história foi ligeiramente adaptada.
2.Trecho de conferência em 22 de dezembro de 1984. Sem
revisão do autor.
3.Fonte: Revista Catolicismo, Nº 840, Dezembro/2020.
https://www.abim.inf.br/o-homem-egocentrico-e-o-presente-de-natal/
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